“Chamas do Destino”, série que retrata caso real de estado de necessidade.

Netflix oferece a série “Chamas do Destino”, baseada num incêndio real ocorrido na primavera de 1897 em Paris, no prédio de madeira em que se realizava o evento beneficente Bazar da Caridade, em 20 minutos completamente tomado pelo fogo, causando a morte de mais de 120 mulheres e centenas de feridos.

Nenhum dos vários homens presentes no local morreu, sendo que as bengalas (indumentária masculina típica da época) de alguns deles tinham sangue e cabelos, porque bateram na cabeça de mulheres na disputa pelo acesso a única porta de saída, giratória, que não permitia circulação de mais de uma pessoa e trancava pelo elevado número de pessoas que tentavam chegar à rua. Inclusive, uma das principais personagens masculinas joga uma mulher que o acompanhava às labaredas para tomar o seu lugar no acesso à saída do prédio.

Cena como essa, apesar da brutalidade que possa revestir-se, corresponde a uma excludente de ilicitude prevista no CP, o estado de necessidade.

Primeira justificativa penal elencada no art. 23, é assim definida no art. 24, ambos do CP:

“Considera-se em estado de necessidade quem pratica um ato criminoso para salvaguardar de perigo atual, direito próprio ou de terceiro, cujo sacrifício em face das circunstâncias, não era razoável exigir-se”.

Nossa legislação não prevê duas modalidades de estado de necessidade, uma que exclua a ilicitude e outra que exclua a culpabilidade.

O Estado de Necessidade, no CP de 1940, é excludente de antijuridicidade, mas fundada na não exigibilidade, conforme entendia HUNGRIA (1958, p. 442), para quem o “não poder” redundava no “não dever”[1]

O CP segue a teoria unitária, de acordo com a qual há uma única modalidade do estado de necessidade, com único efeito, de exclusão da ilicitude.

A teoria diferenciadora, que o CP de 1969 adotaria caso tivesse entrado em vigor, como diz o seu próprio nome, “diferencia”: o estado de necessidade exclui a ilicitude, fundamentado no balanceamento de bens ou deveres em colisão, ou exclui a culpabilidade, fundamentado na não exigibilidade de outra conduta. Justifica a conduta que enfrenta o perigo para salvar bem cujo sacrifício nas circunstâncias não era razoável exigir-se, não sendo preciso que o agente atue com certeza de eficácia ou que obtenha pleno êxito na conduta de vencer o perigo e salvar o bem jurídico exposto[2].

Via de regra, o estado de necessidade serve para a salvaguarda de bem de valor igual ou superior ao sacrificado, mas é possível ocorrer, em excepcionais circunstâncias, o prevalecimento lícito de bem menos valioso, desde que não em grassa desproporcionalidade com o bem lesado e reconhecido que o seu sacrifício não era razoável.

Adequada hipótese é lembrada por EDUARDO CORREIA, daquele que, como único meio de evitar uma grave ofensa corporal, como a da perda de um dos braços ou da visão, não resista a atirar sobre outrem, causando-lhe a morte, a bomba que vai explodir nas suas mãos[3].

Todavia, pela grassa e irrazoável desproporção, num naufrágio, seria inadmissível reconhecer o estado de necessidade na conduta de quem matasse uma pessoa para colocar no seu lugar, dentro do bote salva-vidas, valiosa escultura, ou na conduta do comandante que mandasse jogar um passageiro na água para salvar a carga transportada.

A razoabilidade do sacrifício de um bem em proveito da proteção de outro deve ser examinada em cada caso, com individualizada e específica solução.

Envolvendo ponderação ou escalonamento de bens ou deveres, pode ser de uma tarefa de extrema complexidade diante da situação concreta. É uma razoabilidade jurídica, não ética ou moral, muito menos econômica.

Nessa perspectiva, e aí a referência inicialmente feita à série Chamas do Destino, a vida do homem vale tanto quanto a vida da mulher, a do médico tanto quanto a do paciente, a do rico tanto quanto a do pobre.


[1] MIGUEL REALE JÚNIOR, Código Penal Comentado, pág. 109.

[2] EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, vol. II, pág. 87.

[3] Direito Criminal, vol. II, pág. 71.

Share this