Crime de sonegação fiscal. Seguro garantia em embargos à execução. Extingue ou não a punibilidade penal?

Em sede de Habeas Corpus, o TJSP, por unanimidade, decidiu que o oferecimento da garantia em execução não equivale ao pagamento da dívida, hipótese prevista como causa extintiva da punibilidade: “apenas a quitação do débito tributário pode extinguir a punibilidade do paciente e não o oferecimento de garantia da execução civil, pressuposto este de admissibilidade dos embargos à execução, consoante o artigo 16, § 1º, da Lei  6.830/1980” (processo nº 2063820-27.2021.8.26.0000).

O juízo de primeiro grau decidira que, embora oferecido seguro em garantia, em sede de embargos à execução fiscal, com valor suficiente para garantir a dívida com a Fazenda Estadual, tal medida não tem o condão de se equiparar a efetivo pagamento do débito tributário, ensejando a extinção da punibilidade como a do crime ora apurado.

E, assim, o tribunal paulista reputou “inviável” o trancamento do inquérito policial.

Esta decisão não condiz com o nosso ponto de vista, apesar de reconhecê-lo amplamente minoritário especialmente no âmbito dos tribunais.

Porém, insistimos.

A fiança bancária (Lei nº 13.043/13), para o pagamento do débito fiscal em casos de parcelamento administrativo fiscal ou execuções fiscais, equipara-se ao pagamento sob condição resolutiva. “No processo de execução fiscal, a carta de fiança bancária é considerada, à semelhança do depósito judicial e da penhora sobre dinheiro, meio juridicamente idôneo e eficaz para a satisfação do crédito executado” (Monteiro Neto, in A fiança bancária na execução penal).

Dispõe o art. 9º, II, da Lei de Execução Fiscal: “Em garantia da execução, pelo valor da dívida, juros e multa de mora e encargos indicados na Certidão de Dívida Ativa, o executado poderá: I – efetuar depósito em dinheiro, à ordem do Juízo em estabelecimento oficial de crédito, que assegure atualização monetária; II – oferecer fiança bancária”.

E o Código de Processo Civil, em seu artigo 835, § 2º, estabelece que: “[…] para fins de substituição de penhora, equiparam-se a dinheiro a fiança bancária e o seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de 30%…”.

A única diferença entre o depósito integral/fiança e o pagamento é que o contribuinte ainda pretende exercer o direito constitucional de petição, buscando reverter situação que compreende injusta.

O depósito judicial em conta corrente remunerada do valor discutido, com os respectivos acréscimos e cominações legais, e a fiança bancária, por igual, estabelecem uma relação de garantia entre as partes, de modo que, ainda que o Poder Judiciário decida confirmar o débito do contribuinte, o valor correspondente do tributo já está garantido e poderá ser imediatamente levantado. A jurisprudência do STJ equipara a fiança bancária ao depósito em dinheiro em matéria tributária, para satisfação/garantia do crédito exequendo.

Em virtude do depósito do dinheiro e da fiança bancária em valores correspondentes ao auto de lançamento que materializam o delito, os prováveis desfechos das ações fiscais serão os seguintes:

a) Procedência da demanda executória, convertendo-se os valores garantidos em renda em favor da Fazenda Pública, com a quitação do débito e a extinção da punibilidade do imputado pelo pagamento, pois, no resumo da jurisprudência assente, “ainda que efetuado posteriormente ao recebimento da denúncia, o pagamento extingue a punibilidade dos crimes tipificados nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90” (STJ, RHC nº 14.914/SP, Relatora Ministra Laurita Vaz), ex vi do art. 61, do Código de Processo Penal.

b) Improcedência da demanda, com a devida desconstituição do crédito tributário – o que enseja a absolvição do acusado pela prática de sonegação fiscal por estar provada a inexistência do fato.

Nesse contexto de dois únicos possíveis desfechos, pois, como bem observa Diogo Malan, in Reflexos Processuais Penais dos Embargos à Execução Fiscal, “não há terceiro deslinde possível”, se ficar comprovado que o imposto era devido, as garantias integrais do débito serão entregues à Fazenda Pública e o pagamento integral do débito tributário assim realizado extingue a punibilidade penal.

O delito de sonegação fiscal é doutrinariamente classificado de crime material, porque exige, à sua conformação típica, como resultado fenomenológico, a supressão ou redução de tributo em prejuízo dos cofres públicos.

Tal como leciona Hugo Brito Machado, in Crimes contra a ordem tributária, É crime material, de dano, pois para a sua consumação é indispensável a ocorrência de resultado consistente na supressão ou redução do tributo devido aos cofres públicos”.

Assim, com as garantias integrais do depósito judicial e da fiança bancária apresentadas, não há dano aos cofres públicos nem lesão ao bem jurídico protegido pelo tipo penal do art. 1º, inc. II, da Lei dos Crimes Tributários. “Sem lesividade, não há o crime contra a ordem tributária” (TJSP, HC 993.08.017052-5, Rel. Desembargador Celso Limongi), razão pela qual, venia concessa, não se pode admitir a simultânea persecução penal contra o contribuinte.

O STJ, em paradigmático e uniforme julgamento no Habeas Corpus nº 155.117, por falta de justa causa, determinou o trancamento da ação penal contra dirigentes da empresa Telemar Norte Leste S/A, denunciados por crime contra a ordem tributária, porque “foram oferecidas garantias integrais sobre os valores devidos, garantias estas aceitas pelo Juízo e pela Fazenda Pública, não se justificando a manutenção do processo criminal, pois em qualquer das soluções a que se chegue no juízo cível ocorrerá a extinção da ação penal”.

Consta do voto do Ministro Relator:

“O art. 9º da Lei de Execução Fiscal admite expressamente a possibilidade de oferecimento de fiança bancária como forma de garantir o juízo. Nessa situação, se em qualquer uma das ações a empresa for vencedora, significa que o respectivo débito tributário não era devido, sendo de rigor a absolvição dos pacientes.

Se por outro lado, ficar comprovado que o imposto era devido, a garantia oferecida deve, após o trânsito em julgador da decisão, ser entregue à Fazenda Pública, nos termos do art. 32, § 2º, da Lei nº 6.830/1980. Nessa hipótese, nos termos de pacífica jurisprudência desta Corte e do Supremo Tribunal Federal, o pagamento integral do débito tributário é causa de extinção da punibilidade.

Diante dessas circunstâncias, não vejo razões que justifiquem a manutenção do processo criminal, pois em qualquer das soluções a que se chegue no juízo cível ocorrerá a extinção da ação penal, motivo pelo qual se mostra razoável o seu trancamento.

Diante do exposto, voto pela concessão do habeas corpus para trancar a ação penal de que aqui se cuida”.

Na doutrina especializada, na mesma linha de ausência de justa causa, assim dissertam Rui Stoco e Tatiana de Oliveira Stoco, in Crimes Contra a Ordem Tributária, pág. 195/196:

A ideia que nos parece central é a de ausência de justa causa para a ação penal. Afinal, outro deslinde na esfera cível não se pode esperar que não sejam a desconstituição do débito fiscal, caso o contribuinte saia vencedor, e, por consequência, a não configuração do crime, ou a extinção da punibilidade por força da quitação do débito. Ou então, a possibilidade de levantamento da garantia pelo Fisco, caso o contribuinte saia vencido. Nesse contexto, seja qual for o deslinde da discussão no juízo cível, a ação penal estará fadada tão somente à extinção, por um reflexo ou por outro, a depender do resultado da contenda”.

Da mesma forma, para Diogo Malan, no texto citado, além de outras considerações que poderiam ser tecidas na perspectiva da teoria do delito, envolvendo a tipicidade material da conduta desse contribuinte à luz do princípio da ofensividade e a extinção da punibilidade do crime, por analogia in bonam partem com o pagamento integral do tributo e dos acessórios, é lícito concluir que carece de justa causa e provoca constrangimento ilegal à liberdade ambulatória do contribuinte a ação penal condenatória por crime tributário ajuizada na pendência de julgamento de embargos à execução que garantem integralmente o débito executado, por meio de carta de fiança bancária aceita pelo Juízo e Fazenda Pública”.

Em tais circunstâncias,  e o arremate é de Fernando de Moraes Pousada, em conhecido artigo publicado no Conjur e em outros sítios (Garantias na execução fiscal suspendem ação penal de natureza tributária), “prudente se faz seguir a linha de raciocínio de estender a disposição contida no artigo 83, § 4°, da Lei 9.430/1996, que trata sobre a extinção da punibilidade pelo pagamento, pois o desfecho de qualquer processo de execução fiscal (cuja garantia idônea esteja vinculado) não acarretará no processamento de crime por supressão de tributo, visto que o crédito tributário já estará garantido (por terceiro), inexistindo, assim, chance de inadimplemento”, que ainda acrescenta duas outras importantíssimas observações:

1ª – “Outrossim, a existência e manutenção de procedimento criminal em face de indivíduo (responsável pela obrigação tributária) cuja punibilidade será extinta no futuro (garantida com a certeza de pagamento) causa gravíssimo constrangimento ilegal, tornando-se possível, ainda, o sancionamento penal sem razão jurídica possível”.

 – “E ainda, continuar a movimentar o Poder Judiciário e sua máquina, já extremamente sobrecarregada com milhões de ações, assim como de processos de natureza penal tributária, sabendo-se que ao final de processos fiscais os tributos serão pagos (vez que garantidos idoneamente), mostra-se desnecessário e contrário aos princípios da economia processual e celeridade”.

Conclusivamente, a utilização da fiança bancária, como modalidades de garantia integral, permitem aos contribuintes discutir judicialmente o crédito tributário executado, sem que haja considerável impacto em suas receitas, e tais garantias autorizam, sem riscos, que o crédito tributário seja adimplido no caso de execução fiscal procedente, tratando-se de temas atuais e relevantes em matéria criminal (STJ, HC nº 155.117; STJ, RHC nº 14.914; TJSP HC 990092167049; HC 0070516652011).  Se divergência há, diz apenas com o fundamento legal da absolvição do réu no processo criminal, se deve ser feito com base no inciso III do art. 397 do CPP, fato narrado não constitui crime (RHC nº 14.914), ou no inc. III do art. 395 do CPP (falta de justa causa – STJ, HC nº 155.117).

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