Participação do juiz criminal na inquirição de testemunhas – limites do art. 212 do CPP
Dispõe o art. 212 do CPP:
“As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo Único: Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição”.
Respeitosa vênia,[1] parece-nos incontroverso que o comando emergente da norma do art. 212, incluída no CPP pela Lei 11.690/2008, determina às partes a formulação de perguntas sobre fatos relacionados ao caso objeto do processo. Ao juiz, indagações aos depoentes somente podem ser feitas em caráter “complementar”, sobre os pontos não esclarecidos.
A norma favorece a imparcialidade e neutralidade do julgador, impõe às partes maior zelo na preparação das inquirições e condiz com o sistema acusatório do processo penal brasileiro adotado pela Constituição, ex vi do seu art. 129, inc. I.
Ao juiz, iniciativa de índole probatória é providência excepcional e unicamente autorizada pela norma para esclarecimento de questões trazidas pela testemunha ao processo, porém, ainda duvidosas depois dos questionamentos diretos da Acusação ou Defesa. Quando toma a iniciativa de perguntar sobre fatos que não tenham sido aventados pela testemunha, corre o sério risco de transmudar-se em inquisidor,
Porém, apesar de mais de década de vigência, demonstra a prática forense que esta norma, que Tourinho Filho disse representar o caminho certo do legislador ao distinguir o papel da Acusação, da Defesa e do Juiz,[2] ainda não foi plenamente absorvida pelos juízes criminais.
Prova disso, recente decisão da Segunda Turma do STF, de relatoria do Ministro Edson Fachin, que reconheceu, de ofício, a nulidade de ação penal a partir da audiência de instrução e julgamento em virtude da indevida intervenção judicial no depoimento de testemunha e do uso, na fundamentação da sentença condenatória, de elementos assim extraídos do depoimento, em manifesto prejuízo ao acusado.[3]
No caso apreciado, o juiz não só foi protagonista na inquirição das testemunhas de acusação como se valeu das informações por ele recolhidas para subsidiar e desenvolver o raciocínio condenatório veiculado na sentença, em frontal e prejudicial inobservância ao comando do art. 212 do CPP, como se letra morte fosse, dando causa a nulidade absoluta.
Conclusivamente, como bem afirmado pelo Ministro Fachin em seu voto, “No que tange à oitiva das testemunhas em audiência de instrução e julgamento, deve o magistrado, em atenção ao art. 212 do CPP, logo após a qualificação do depoente, passar a palavra às partes, a fim de que produzam a prova, somente cabendo-lhe intervir em duas hipóteses: se evidenciada ilegalidade ou irregularidade na condução do depoimento ou, ao final, para complementar a oitiva, se ainda existir dúvida – nessa última hipótese sempre atuando de forma supletiva e subsidiária (como se extrai da expressão “poderá complementar”). A redação do art. 212 é clara e não encerra uma opção ou recomendação. Trata-se de norma cogente, de aplicabilidade imediata, e portanto o seu descumprimento pelo magistrado acarreta nulidade à ação penal correlata quando demonstrado prejuízo ao acusado.”
[1] “O juiz, como presidente da instrução e destinatário da prova, continua a abrir o depoimento, formulando, como sempre fez, às suas perguntas às testemunhas de acusação, defesa ou do Juízo. Somente após esgotar o seu esclarecimento, passa a palavra às partes para que, diretamente reperguntem” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5 edição. São Paulo 2008).
[2] TOURILHO FILHO, Fernando da Costa, Código de Processo Penal comentado (arts. 1° a 393). 13 edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 651-652. Ainda recente a nova norma, a seu respeito dissertou: “Se atentarmos para o fato de que o processo penal acusatório é o que melhor atende aos interesses sociais e que se consona com a Carta Política de 1988, adotando a presunção de inocência, admitindo a ampla defesa, permitindo aos réus contestar a peça acusatória antes do seu recebimento, admitindo a transação para um número extraordinário de infrações, aceitando o julgamento antecipado de que trata o art. 397 do CPP, colocando o órgão jurisdicional no alto da pirâmide, equidistante das partes, na sua verdadeira posição de órgão imparcial e que deve limitar-se a colher as provas produzidas pelas partes, para, ao final da pugna judiciária, dizer qual das duas partes tem razão, parece-nos que o legislador dando nova redação ao artigo 212 do CPP, aliado à nova instrução do plenário do júri, está tomando o caminho certo e distinguindo o papel da Acusação, da Defesa e do Juiz.”
[3]Habeas Corpus 202.557, julgado em 03/08/2021. Semelhante decisão do STJ: “A abolição do sistema presidencial, com a adoção do método acusatório, permite que a produção da prova oral seja realizada de maneira mais eficaz, diante da possibilidade do efetivo exame direto e cruzado do contexto das declarações colhidas, bem delineando as atividades de acusar, defender e julgar, razão pela qual é evidente o prejuízo quando o ato não é procedido da respectiva forma, como na hipótese vertente. Ordem concedida para, confirmando a medida liminar, anular a audiência de instrução e julgamento reclamada e os demais atos subsequentes, determinando-se que outra seja realizada, nos moldes do art. 212 do CPP” (HC 145.182/DF, Quinta Turma, relator Ministro Jorge Mussi, DJe 10/05/2010).