Improbidade administrativa e retroatividade das normas mais benignas da nova lei.

Sem vetos presidenciais, a Lei 14.230, de 15 de outubro de 2021, já em vigor, alterando em parte a Lei 8.429/92, com quase três décadas de vigência, inova em variados aspectos da disciplina jurídica da “improbidade administrativa”.

Certamente, a partir dos próximos dias, haverá significativa movimentação forense pelos advogados das pessoas processadas por improbidade administrativa para fins de incidência de preceitos mais benignos da nova lei, ensejando, por exemplo, discussões teóricas sobre a retroatividade, pela previsível resistência do Ministério Público, o que demandará, na sequência, uniformização de entendimentos pelos tribunais superiores.  

Apesar de reservarmos a análise do conteúdo inovador para oportunidades seguintes, não podemos deixar de reconhecer a justa novidade da abolitio da infração por ato de improbidade culposa. No Brasil, são centenas de pessoas que hoje sentam no banco dos réus por improbidade negligente, verdadeiro excesso, há bom tempo criticada na doutrina e censurada em decisões judiciais.

Não bastasse a falta de razoabilidade em abstratamente punir com igual sanção a quem dolosa ou culposamente comete ato improbidade, ou ínsito ao ato ímprobo a malícia, a deslealdade, a desonestidade, como substratos intelectivos do elemento volitivo que move a conduta a praticá-lo, inocorrentes no agir culposo, lembrando Carvalho Filho, o agente ímprobo sempre se qualificará como violador do princípio da moralidade. [1]

Este primeiro olhar sobre o recente texto tem o objetivo de ressaltar, a despeito de conhecidas e abalizadas opiniões em contrário, a plena aplicabilidade das novas normas mais benéficas.

Incorporado, na cultura jurídica nacional, que a retroatividade da lei mais benéfica é um dos princípios gerais de Direito, e de status constitucional.

A orientação dada ao ordenamento jurídico pelo enunciado do inc. XL do art. 5º da CF, “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu,” é de valor genérico, não se limita ao ramo do Direito Penal, como possa sugerir literal interpretação do dispositivo.

Abrange o conjunto das relações jurídicas sancionadoras do Estado e os administrados, pessoas físicas ou jurídicas.

Se a norma penal mais benéfica retroage, com maior razão deve retroagir a lei que comine sanções administrativas mais brandas, decidiu o STJ.[3]

A autonomia das sanções da lei de improbidade e a menção expressa à norma penal pelo inc. XL do art. 5º, não servem de empecilho nem excluem a incidência do princípio geral de Direito em que a retroativa da novatio legis in mellius se constitui.

Interpretação meramente gramatical da oração constitucional, impediria até mesmo a retroatividade da própria norma penal in mellius ao “condenado”, uma vez que o sujeito do texto da Constituição é o “réu”, não o “condenado”.

Nem permitira o reconhecimento, pelo STF no MS 23.262/DF, da incidência do princípio constitucional da presunção de inocência aos processos administrativos sancionadores, tendo em vista a referência feita pelo dispositivo que o consagra “à sentença penal.” –  inc. LVII do art. 5º da CF.  

Objeções à retroatividade da norma in mellius pautadas na característica específica do Direito Penal, ou na sua distinção científica com o Direito Administrativo, não procedem nem convencem.

Improcedem, porque a exclusiva produção e incidência de efeitos sobre o status libertatis formadores da específica característica do Direito Penal, dos quais a pena privativa de liberdade é a máxima expressão, não produzidos pelas normas sancionadoras do Direito Administrativo, têm sido sensivelmente minoradas por recentes alterações legislativas, a exemplo daquelas que instituíram o acordo de não persecução, a colaboração premiada e as penas alternativas à prisão.

Inconvincentes, tendo em vista que a distinção científica entre estes dois ramos do ordenamento, que determinaria regramentos próprios, estanques e intercambiáveis, não é o foco interpretativo adequado.

O foco para exame deve no ponto de essência comum entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, que não pode ser outro senão o de instrumentos legais da intervenção “punitiva” estatal na esfera jurídica de direitos fundamentais das pessoas, com sanções próximas entre si, e que, paradoxalmente, em algumas situações, mais gravosas pelo ato de improbidade do que pelo crime ao qual este mesmo fato corresponda na lei penal.  

Exemplo da proximidade entre sanções penais e administrativas, serve o comando do art. 15 da CF, que disciplina os casos de perda ou suspensão de direitos políticos, ao fixar, ao ato de improbidade, o mesmo nível punitivo dado à condenação criminal transitada em julgado (incs. III e V).

Exemplos de sanções administrativas por improbidade mais contundentes do que às penais, pelo mesmo fato, servem as situações apontadas pelo Ministro Gilmar Mendes na concessão de medida cautelar no âmbito da ADI 6678 MC/DF, em 1º de outubro de 2021.[4]  

Na dicção do Ministro, “Tendo em vista que a dosimetria da pena inicia-se no mínimo legal, é possível verificar que a suspensão de direitos políticos das condutas ímprobas em tela é superior aos crimes de peculato (Código Penal, artigo 312), concussão (Código Penal, artigo 316) e corrupção passiva (Código Penal, artigo 317). Isso significa que o agente público que “celebrar contrato de rateio de consórcio público sem suficiente e prévia dotação orçamentária, ou sem observar as formalidades previstas na lei” (art. 10, inciso XV, da Lei 8.429/1992), ainda que culposamente, poderá ter os direitos políticos suspensos por período superior ao cidadão condenado pelo desvio de verbas públicas.”

Portanto, em nosso ponto de vista, os princípios da retroatividade, legalidade, isonomia e razoabilidade foram um todo único, em que a violação de um é a violação do todo, de proteção aos administrados contra os abusos punitivos estatais em quaisquer das órbitas de sua intervenção sancionadora. Consistentes, por exemplo, na punição de infrações abolidas (legalidade). Sancionamentos desiguais a fatos iguais tão somente em função do tempo de ocorrência (isonomia). Punições desnecessárias, irrazoáveis  e desatualizadas em face de modificação valorativa dos mesmos fatos pelo próprio legislador em novas leis (razoabilidade).[5]

Este mesmo todo resultante da conexão entre tais princípios, também orienta a inaplicabilidade da máxima tempus regit actum quando nova lei, penal ou extrapenal, produza efeitos jurídicos de abolição ou suavização de enunciados normativos sancionadores.

Na lição sempre prestigiada de José Afonso da Silva, “se o Estado reconhece, pela lei nova, não mais necessária à defesa social a definição penal do fato, não seria justo nem jurídico alguém ser punido e continuar executando a pena cominada em relação a alguém, só por haver praticado o fato anteriormente.”[6]


[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2017, p. 599.

[2] FIGUEIREDO, Isabela Giglio. Improbidade Administrativa – dolo e culpa. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 127.

[3] Nesse sentido, STJ, RE 1.153.083/MT, Primeira Turma, relatora para o acórdão a Ministra Regina Helena Costa.

[4] “Ante o exposto, defiro a medida cautelar requerida, ad referendum do Plenário (art. 21, V, do RISTF; art. 10, § 3º, Lei 9.868/1999), com efeito ex nunc (art. 11, § 1º, da Lei 9.868/99), inclusive em relação ao pleito eleitoral de 2022, para: (a) conferir interpretação conforme à Constituição ao inciso II do artigo 12 da Lei 8.429/1992, estabelecendo que a sanção de suspensão de direitos políticos não se aplica a atos de improbidade culposos que causem dano ao erário; e (b) suspender a vigência da expressão “suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos” do inciso III do art. 12 da Lei 8.429/1992.”

[5] No RE 600817, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, julgado pelo Plenário do STF com acórdão publicado no DJe de 30/10/14, o Ministro Fux, em seu voto, disse: “O princípio da isonomia impede que dois sujeitos sejam apenados de forma distinta apenas em razão do tempo em que o fato foi praticado, porquanto a valoração das condutas deve ser idêntica antes e depois da promulgação da lei, exceto nos casos em que a legislação superveniente seja mais gravosa. A lei, expressão da democracia e garante das liberdades individuais, não pode ter a sua incidência manietada quando se trata de favorecer os direitos fundamentais, sendo esse o caso da novatio legis in mellius.”

[6] SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 138.

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