Baldwin, tiros, lesões e morte.

O FATO E A NOTÍCIA A SEU RESPEITO.

Corre desde ontem, 21 de outubro de 2021, a notícia de que o conhecido ator Alec Baldwin, com disparos de arma cenográfica supostamente municiada com balas de festim, no set do filme Rust, atingiu mortalmente a diretora de fotografia, Halyna Huchins, e feriu no ombro o diretor do filme, Joel Souza, no estado americano do Novo México.

AS CIRCUNSTÂNCIAS CONHECIDAS DO FATO.

As circunstâncias do episódio ainda não foram suficientemente esclarecidas pela polícia do condado de Santa Fé. Desconhecidas particularidades sobre a arma, como foram efetuados e quantos os tiros disparados. Nem revelados maiores detalhes sobre a munição, constando de matérias veiculadas pela mídia que a produção do filme teria dito de festim. Como as duas pessoas baleadas eram da equipe e estavam nos  bastidores, possivelmente os disparos foram efetuados na direção das câmeras.

O FATO E O DIREITO PENAL.

Apesar desta falta de informações sobre as circunstâncias do triste acontecimento, podemos afirmar que dois fatos penalmente relevantes dele decorreram: homicídio e lesões corporais, respectivamente previstos nos arts. 121 e 129 do Código Penal.

No entanto, devido à inexistência de conclusiva investigação, não é dado afirmar, acima de dúvida razoável, se foram fatos dolosos ou culposos, se foram obras do azar ou da intenção de alguém, inclusive do próprio ator.  

Temos, pelo que se conhece da personalidade de Baldwin e das suas reações depois do ocorrido divulgadas, reforçados pelo princípio da presunção de inocência, garantia individual conferida pela Constituição do Brasil ao cidadão, que da sua parte “não houve dolo nem culpa”.

O ERRO DE TIPO.

Pelo que aparentemente ocorreu, sob o ponto de vista do Direito Penal, houve um “erro de tipo”, matéria prevista e disciplinada pelo art. 20 do CP nos seguintes termos: “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.”

Explicando, “elemento constitutivo do tipo legal de crime”, é todo aquele que faz parte da descrição legal do delito.

Adota-se, no Brasil (art. 1º do CP) e no mundo civilizado em matéria de incriminação, o princípio da legalidade dos crimes e das penas. Entre nós, princípio constitucional, enunciativo de que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (inc. XXXIX do art. 5º).

Dessa forma, para cumprir o mandamento constitucional, o legislador, ao criar uma figura delitiva, deve necessariamente definir o fato que a constitua, descrevendo-o em todas as suas circunstâncias. A definição legal modela, tipifica a conduta delituosa.

Pois bem.

Relativamente ao homicídio, a definição legal do crime é simples, curta e objetiva. Descreve o art. 121 do CP, sob a rubrica homicídio: “Matar alguém: Pena –   reclusão de seis a vinte anos.” Por sua vez, sob a rubrica lesões corporais, o art. 129 do CP descreve: “Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena – detenção, de três meses a um ano.”

Assim, matar uma pessoa, é elemento constitutivo do tipo legal do crime de homicídio. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outra pessoa, é elemento constitutivo do tipo legal do crime de lesões corporais.

Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente (§ único do inc. II do art. 18 do CP).

Disso resulta a regra de que, ao lermos a descrição legal de uma determinada espécie de delito, será sempre de uma espécie dolosa, intencional.

Quando, porém, também é estabelecida pela lei a modalidade culposa, opera-se a excepcionalidade. O homicídio e as lesões corporais são dois casos desta excepcionalidade. Isto é: são crimes previstos na modalidades dolosa (§ 3º do art. 121 do CP) e culposa (§ 6º do art. 129 do CP).

Baldwin, mesmo não tendo agido com as finalidades de matar e lesionar pessoas, matou e ofendeu. No plano da realidade fenomenológica, foi sua a conduta de acionar o gatilho da arma, desferir os tiros e atingir as vítimas, matando uma e ferindo outra.  

Todavia, o fez por erro. Ao efetuar os disparos, por desconhecimento da letalidade da munição contida na arma passada às suas mãos pela equipe responsável, não tinha consciência nem vontade de que acionava projéteis verdadeiros, de que realizava uma conduta capaz de matar e ferir. Não tinha consciência nem vontade de efetuar disparos letais, da morte e lesões nas vítimas, de nexo de causalidade entre a conduta e estes resultados. Pensava, “e aí o erro”, usar instrumento não letal, de absoluta ineficácia para causar tão graves consequências à vida e à saúde de seus dois companheiros de filmagem.  

Caracterizado o erro quanto às condutas elementares do tipo de homicídio e lesões, matar e ofender, relembrando-se a disciplina legal do erro de tipo estabelecida pelo art. 20, na sua primeira parte, “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo,” consequentemente excluídas as imputações de homicídio e lesões corporais dolosas contra o ator.

Resta saber se ele deve ser penalizado por homicídio e lesões corporais culposas, pois, conforme também já visto, a parte final do art. 20 do CP, ao regrar o erro de tipo, diz assim: “Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo” – grifamos.

Dito de outra maneira, quando o erro sobre estar matando ou ofendendo a integridade corporal de alguém “não” resulta de culpa, o fato é “impunível”.

Então, devemos verificar se houve culpa de Baldwin.

Nos domínios do Direito Penal, “culpa”, em sentido estrito, significa um agir negligente que dá causa a resultado juridicamente desvalioso, previsível e evitável nas circunstâncias do seu acontecimento.

Os autores da doutrina penal têm conceituado a culpa como a conduta voluntária, por ação ou omissão, que produz resultado antijurídico não querido, mas previsível (culpa inconsciente), e excepcionalmente previsto (culpa consciente), que podia, com a devida atenção, ser evitado.[1]

A culpa opõe-se ao dolo, que significa um agir intencional à produção do resultado juridicamente desvalioso. De acordo com o CP, há dolo quando o agente do fato quer o resultado ou assume o risco de produzi-lo (art. 18, inc. I).

Na culpa, o destaque não está na finalidade, característica do dolo, mas nas “consequências” antissociais que a conduta produz, que devem ser previsíveis e evitáveis.

Segundo nosso CP, o crime é culposo “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.” (art. 18, inc. II).  

Estas três modalidades de manifestação da culpa podem ser sintetizadas na “negligência”, pelo seu significado de “abstenção de cuidado”.

Sempre, porém, negligência vinculada à “previsibilidade” do resultado desvalioso, como possibilidade de ser antevisto nas condições em que o sujeito se encontrava e que, por isso, no plano subjetivo, recomendaria a tomada de cuidado no seu agir. Previsibilidade concreta e não abstrata, diante da situação real e não meramente hipotética, pois, hipoteticamente, quase todos os fatos naturais podem ser previstos pelo homem. Sem a previsibilidade, o fato não pode ser evitado. Foi o que parece haver acontecido.

Para Baldwin era possível prever que a munição fosse verdadeira e não de festim? Antever a morte da diretora de fotografia e as lesões no diretor do filme nas circunstâncias concretas até agora conhecidas? Ou, na situação real por ele vivida, num contexto de filmagem com equipes responsáveis por cenários, roteiros, figurinos, materiais etc., seria ordinariamente previsível a colocação de estojo letal no lugar do festim, de modo a que sentisse, como fenômeno subjetivo, ou devesse ter sentido, como cautela prévia ao acionamento do gatilho da arma, a necessidade de proceder a meticuloso exame pessoal da munição?   

PRINCÍPIO DA CONFIANÇA.

Antes de respondermos a tais indagações, é preciso mencionar o chamado “princípio da confiança”, criado pela doutrina penal com a finalidade de orientar a delimitação do “âmbito e grau” de exigência da previsibilidade nas “ações coletivas”.

Coletivas, são as ações compartilhadas, levadas a efeito por um conjunto de pessoas. Para que possam ter existência, desenvolvimento e sucesso, cada qual dos envolvidos deve cumprir sua parte, à risca. Assim, comportando-se adequadamente, espera e confia que os demais que compartilham a atividade também ajam adequadamente, sejam diligentes, para o êxito da empreitada comum sem gratuita violação de direitos, num ambiente pautado pela recíproca confiança de que todos agirão corretamente.  

Isso ocorre num ato cirúrgico, por exemplo, em que o médico espera e confia no adequado comportamento do anestesista e demais membros da equipe participante. Ou, e é o caso, num set, em que os deveres de cuidado a todos dirigidos gera, em cada um, pelo cumprimento da sua parte, a “justa confiança” de que o outro também cumprirá a sua, razão pela qual aquele que tenha atendido ao seu dever não pode ser penalmente castigado por ações desatentas, defeituosas e lesivas cometidas por terceiros.

Portanto, exigir-se extrema cautela de Baldwin, consistente na verificação pessoal da natureza e letalidade dos projéteis colocados na espingarda pela equipe responsável pelos materiais, por obrigatória “desconfiança” da diligência de seus membros, numa inversão de papéis, não teria pressuposto lógico, tornaria o princípio da confiança inservível e inviabilizaria a execução das cenas e filmagem como ações coletivas.[2]

CONCLUSÃO.

Para Baldwin, nas circunstâncias fáticas até agora conhecidas, “não” era possível antever a morte da diretora de fotografia e as lesões no diretor do filme, uma vez que, pelo princípio da confiança, “não” teria razões objetivas para sequer cogitar de que a munição fosse verdadeira e a proceder prévio e meticuloso exame pessoal a respeito.

Inexistia um dever objetivo de cuidado a cumprir, pelo que não se pode falar de inobservância “negligente”, e, por consequência, de “culpa.” A morte e lesões corporais, fatos da realidade, não correspondem a fatos delituosos atribuíveis ao ator.   

Salvo, e aí a excepcionalidade que o incriminaria, tivesse ocorrido semelhante episódio no curso da mesma filmagem pela mesma equipe, situação então concreta e determinante de cautela não tomada, pelo esmaecimento em grau, quando não completa exclusão, da confiança recíproca inerente aos eventos coletivos.

Imputáveis, o homicídio e as lesões corporais, somente a quem lhes tenha dado causa, por dolo ou negligência.

Se o tenha feito com dolo, valendo-se da insciência de Baldwin sobre o dado letal da munição, usou o ator de longa manus na execução das condutas típicas de matar e ofender, devendo ser responsabilizado pelas modalidades dolosas de tais delitos, de que foi como autor “mediato”, cujas penas serão somadas (art. 70, segunda parte, do CP).

Se o tenha feito por negligência, caracterizada pela omissão de cuidado ao não verificar a natureza da munição antes de passar a arma às mãos de Baldwin, deve responder pelas modalidades culposas, com aplicação da pena do homicídio, somente, mas acrescida de um sexto até metade, obrigatoriamente (art. 70, primeira parte, do CP).


[1] Por todos, Mirabete, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral – Vol. 1 (p. 279). Atlas. Edição do Kindle.

[2] Segundo o portal Showbiz, Baldwin afirmou que nunca havia segurado um modelo de arma similar, e após aos disparos acidentais perguntou por que recebeu uma “arma quente”, que contém munição.

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