Situações extremas e a excludente do estado de necessidade. Art. 24 do Código Penal.

Quase sempre, o estado de necessidade, excludente da ilicitude prevista no art. 24 do CP, que justifica a prática do fato típico quando inevitável para superação de situação de perigo atual a direito próprio ou de terceiro, não criado nem devido pelo agente o dever de enfrentá-lo, envolve dramáticas situações da experiência humana, situações de dificílima resolução para o indivíduo que se vê na contingência de eliminar a vida do semelhante para proteger a sua ou de algum familiar, resultantes de naufrágios, incêndios, desmoronamentos, desastres aéreos, ferroviários, multidão em pânico etc.

No curso da história, alguns episódios podem ser lembrados.

Em São Paulo, no ano de 1951, num cinema de Campinas, durante uma sessão, o teto desabou e mais de cinquenta espectadores morreram, quase todos por asfixia, causada por pisoteamento.

Em Madrid, no ano de 1928, no Teatro Novedades, durante uma exibição realizada em domingo à noite, setenta e duas pessoas morreram. O número maior de mortos foi por pisoteamento do que por queimaduras.

Em 2019, dois adolescentes invadiram uma escola em Suzano, São Paulo, e mataram a tiros 10 pessoas. Em 2018, um estudante do ensino médio pegou uma arma e atirou nos colegas em uma escola estadual de Medianeira, no oeste do Paraná.

Em 2017, um adolescente de 14 anos disse ter se inspirado nos massacres em escolas americanas, para matar dois estudantes e ferir outros quatro num colégio de Goiânia.

Em Realengo, Rio de Janeiro, no ano de 2011, um ex-aluno entrou na Escola Municipal Tasso da Silveira, invadiu uma sala e atirou, matando quatro estudantes. Em seguida, entrou na sala vizinha e fez mais disparos, matando mais oito crianças. Outros 12 estudantes foram baleados, mas sobreviveram ao ataque. Ao todo, foram mais de 60 disparos em 15 minutos.

Nos Estados Unidos são frequentes tiroteios em escolas. Em 2019, em Santa Clarita, Califórnia, um jovem atirou contra colegas de sua escola do ensino médio, matando dois companheiros e ferindo outros três antes. Em Highlands Ranch, Colorado, dois adolescentes abriram fogo numa escola no subúrbio de Denver, matando um estudante e ferindo outros oito. Em 2018, na cidade de Santa Fé, Texas, com um fuzil e uma pistola, um estudante atirou contra 20 pessoas em uma escola do ensino médio, matando dois adultos e oito jovens. Em Parkland, Flórida, outro jovem descarregou seu fuzil semiautomático na escola do ensino médio, matando 17 pessoas. Em Connecticut, no ano de 2012, um homem matou 26 pessoas, incluindo 20 crianças de 6 e 7 anos, na escola primária Sandy Hook. Em 2007, na Virginia Tech University, um estudante oriundo da Coreia do Sul matou 32 pessoas com duas pistolas.

Em todos estes fatos, as vítimas, expostas a risco de vida pelos disparos efetuados pelos agentes (fonte do perigo um ato humano), que não teriam criado nem tinham o dever legal de enfrentar, se, para se salvarem dos tiros, umas fizessem de outras seus escudos de proteção, agiriam em estado de necessidade relativamente às mortes que assim causassem.

Na tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, as centenas de jovens que se viram encurralados dentro do prédio em chamas e intensa fumaça altamente tóxica, passaram por situação de perigo que penalmente justificaria as lesões inevitáveis, inclusive mortais, que entre si cometessem quando em busca de acesso à única porta de saída.

Deixando a realidade e passando para o plano da ficção, o filme Limite Vertical é um pedagógico exemplo de homicídio em estado de necessidade.

Centralizado no resgate feito por Peter de sua irmã Annie, presa com outros alpinistas numa tumba de 8 mil metros de altitude, zona acima do limite vertical de resistência do corpo humano, onde ninguém sobrevive por muito tempo, no K2, a segunda montanha mais alta do mundo, conta o terrível acidente do casal de irmãos anos antes ocorrido quando, juntamente com o pai, numa outra montanha, ao se verem presos por um gancho depois de sofrerem um deslizamento, Peter, por ordem do pai, cortou a corda exatamente acima dele, para que, com a queda (e morte fatal), o gancho, tendo de suportar menos peso, não se desprendesse da rocha e os filhos pudessem salvar-se. 

LON L. FULLER, para escrever a estória dos exploradores presos na caverna de Newgarth, inspirou-se em dois casos reais e polêmicos julgados pela justiça norte-americana, “US v. Holmes” (1842), em que alguns homens foram mortos ao serem jogados ao mar para aliviar o peso do bote salva-vidas e salvar a vida dos demais, e “US v. Regina Dudley & Stephens” (1884), de canibalismo, em que os homicídios foram cometidos como forma de obter alimento para os sobreviventes à beira da morte pela fome.

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