Dolo eventual de matar.

Segundo a lei penal, o dolo de matar, elemento subjetivo do crime de homicídio, pode ser direto ou eventual, numa equiparação entre a conduta de quem conscientemente assume o risco de matar (dolo indireto ou eventual) e a conduta intencionalmente dirigida à produção do resultado morte (dolo direto).

Se diferença entre estas classes de dolo pode ser feita, é no campo da dosimetria da pena. Sendo o dolo eventual a forma mais tênue de dolo, a reprimenda penal a quem atua com dolo eventual de matar não deve ser mais gravosa do que a reprimenda aplicada a quem mata com dolo direto.[1] Incomparável, apesar das mesmas centenas de mortes, o dolo eventual de matar ao dolo genocida ou terrorista, por exemplo.

Diz-se dolo direito, quando o homicida atua com consciência e vontade em fazer da sua conduta a causa eficiente da morte da vítima. Saca a arma e efetua tantos tiros quanto necessários forem para causar a morte do desafeto.

Significa o querer matar, a conduta intencionalmente dirigida à destruição da vida alheia. No dolo direito há consciência e vontade na conduta, consciência e vontade na morte, consciência e vontade em fazer da conduta a causa eficiente da morte da vítima.

Já no dolo eventual, há vontade apenas na conduta. Na morte e no nexo de causa e efeito, há somente consciência, porquanto, se vontade também houvesse, o dolo seria direto e não eventual.

Configura-se quando, diante de uma situação real e não meramente hipotética, o sujeito prevê a eventual produção da morte de alguém como efeito concomitante da sua conduta (pela natureza e forma de utilização dos meios de execução) e mesmo assim dela não desiste por prevalência de uma vontade incondicional em realizá-la.

Pode até “rezar” ou torcer para que o resultado letal não se produza, mas nem por isso deixa de apontar o revólver para a cabeça da vítima, girar o tambor que possui um único projétil e acionar o gatilho que dispara o tiro mortal, como ocorre na roleta russa.[2]

Porém, considerando que a partir daí perde inteiramente o controle do nexo, sem mais condições para pessoalmente interferir na relação de causa e efeito,[3] a ordem jurídica reconhece tenha consentido com o que viesse a ocorrer, tomado para si o resultado morte eventualmente produzido, pois é uma forma de querê-lo indiretamente e o querer indireto é querer tanto quanto o querer direto.

Portanto, dolo eventual de matar não decorre de uma mera e teórica possibilidade de produção da morte de alguém por causa de uma conduta de risco.

Não é previsibilidade desta causalidade, como algo possível de ser antevisto, mas previsão, efetiva antevisão do resultado que pressupõe uma situação real de exposição do bem da vida a efetivo risco de dano, da qual o point of no return é a evidência máxima, uma vez que o resultado ocorrerá sem que sejam viáveis ulteriores intervenções do autor.

Exemplificativamente, sem a previsão concreta do risco de incêndio, que somente surge a partir da realidade fática vivenciada pelo agente diante da cena em que alguém aciona artifício pirotécnico em prédio cujo teto é forrado por espuma, os resultados lesivos decorrentes são autênticas obras da negligência, porque os descuidos com as normas de segurança e combate a incêndio até então não haviam protagonizado riscos mortais no plano concreto da realidade fática, e o dolo, inclusive eventual, deve ser um querer direto ou indireto contemporâneo e não antecedente à conduta que se queira qualificá-la como tal.

Enfim, a configuração do dolo eventual exige perigo atual e concreto de matar criado pela conduta, diante do qual o agente, por insensibilidade, indiferença e egoísmo, desdenha da vida humana ao preferir pelo risco em detrimento da prudência.

Nessas circunstâncias, aos olhos da lei penal, consente com a eventual conversão do risco em dano, da vida em morte, e esses dois aspectos, intelectivo e volitivo, formam a base do dolo eventual de matar.  


[1]STJ: “Não é razoável punir mais severamente o agente que atua com dolo eventual se comparado àquele que age com dolo direto” – HC 115.691-PR, Sexta Turma, relator Ministro Og Fernandes, julgado em 17/12/2009 e acórdão publicado no DJE de 22/02/2010.  

[2] Roleta russa é um jogo de azar, retratado nos filmes The Deer Hunter e One Eight Seven.  Há a chance de 1 em 6 (ou 17%) de o revólver disparar a bala, quando possui seis câmaras e um só projétil. A forma do jogo pode ser tão variada quanto o número de participantes e os motivos de participarem. Mas, objetivamente, envolve a colocação de um cartucho numa das câmaras de um revólver, cujo tambor depois é girado e fechado, sem que a localização do projétil seja desconhecida, e o participante leva a arma contra sua cabeça e aciona o gatilho, correndo o risco de morrer.

[3] Qual a confiança que ele, racionalmente, poderia ter quanto à não-ocorrência do resultado morte, sabendo-se que a simples esperança é completamente inócua quando não socorrem possibilidades objetivas e suficientes? De natureza estatística, probabilidade ou boa sorte da vítima?

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