Indisponibilidade de bens por improbidade administrativa. Alterações legais.

O bloqueio de bens, pela redação original da Lei de Improbidade Administrativa – LIA, permitia fosse decretado com base num “presumido” perigo de dano irreparável ou o risco ao resultado útil do processo.

Hoje não mais.

Dentre as alterações produzidas pela Lei 14.230/21, o perigo deve ser demonstrado pelo Ministério Público, pautado em fatos objetivos e passíveis ao contraditório, inclusive prévio, que passou a ser regra (§ 3º do art. 16). A falta de oitiva prévia do réu somente será justificada se o contraditório puder comprovadamente frustrar a efetividade da medida ou houver outras circunstâncias que recomendem a proteção liminar, mas a urgência ser presumida (§ 4º do art. 16).

Assim pura especulação não tem guarida.

Dispõe o art. 16, § 3º da LIA:

“O pedido de indisponibilidade de bens a que se refere o caput deste artigo apenas será deferido mediante a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo, desde que o juiz se convença da probabilidade da ocorrência dos atos descritos na petição inicial com fundamento nos respectivos elementos de instrução, após a oitiva do réu em 5 (cinco) dias” (grifamos).

Outro aspecto relevante, é o de que o bloqueio de “contas bancárias” só pode ser feito em último caso. A preferência deve recair sobre bens de menor liquidez.

Nesse sentido, reza o § 11 do art. 16 da LIA:

A ordem de indisponibilidade de bens deverá priorizar veículos de via terrestre, bens imóveis, bens móveis em geral, semoventes, navios e aeronaves, ações e quotas de sociedades simples e empresárias, pedras e metais preciosos e, apenas na inexistência desses, o bloqueio de contas bancárias, de forma a garantir a subsistência do acusado e a manutenção da atividade empresária ao longo do processo” (grifamos). 

Essas novas regras devem ter aplicação retroativa. Incorporado, na cultura jurídica nacional, que a retroatividade da lei mais benéfica é um dos princípios gerais de Direito, e de status constitucional. A orientação dada ao ordenamento jurídico pelo enunciado do inc. XL do art. 5º da CF, “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu,” é de valor genérico, não se limita ao ramo do Direito Penal, como possa sugerir literal interpretação do dispositivo. Abrange o conjunto das relações jurídicas sancionadoras do Estado e os administrados, pessoas físicas ou jurídicas. Se a norma penal mais benéfica retroage, com maior razão deve retroagir a lei que comine sanções administrativas mais brandas.

A autonomia das sanções da lei de improbidade e a menção expressa à norma penal pelo inc. XL do art. 5º, não servem de empecilho nem excluem a incidência do princípio geral de Direito em que a retroativa da novatio legis in mellius se constitui. Interpretação meramente gramatical da oração constitucional, impediria até mesmo a retroatividade da própria norma penal in mellius ao “condenado”, uma vez que o sujeito do texto da Constituição é o “réu”, não o “condenado”. Nem permitira o reconhecimento, pelo STF no MS 23.262/DF, da incidência do princípio constitucional da presunção de inocência aos processos administrativos sancionadores, tendo em vista a referência feita pelo dispositivo que o consagra “à sentença penal.” –  inc. LVII do art. 5º da CF.  

Objeções à retroatividade da norma in mellius pautadas na característica específica do Direito Penal, ou na sua distinção científica com o Direito Administrativo, não procedem nem convencem.

Improcedem, porque a exclusiva produção e incidência de efeitos sobre o status libertatis formadores da específica característica do Direito Penal, dos quais a pena privativa de liberdade é a máxima expressão, não produzidos pelas normas sancionadoras do Direito Administrativo, têm sido sensivelmente minoradas por recentes alterações legislativas, a exemplo daquelas que instituíram o acordo de não persecução, a colaboração premiada e as penas alternativas à prisão.

Não convencem, tendo em vista que a distinção científica entre estes dois ramos do ordenamento, que determinaria regramentos próprios, estanques e intercambiáveis, não é o foco interpretativo adequado.

O foco para exame deve no ponto de essência comum entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, que não pode ser outro senão o de instrumentos legais da intervenção “punitiva” estatal na esfera jurídica de direitos fundamentais das pessoas, com sanções próximas entre si, e que, paradoxalmente, em algumas situações, mais gravosas pelo ato de improbidade do que pelo crime ao qual este mesmo fato corresponda na lei penal.  

Em nosso ponto de vista, os princípios da retroatividade, legalidade, isonomia e razoabilidade foram um todo único, em que a violação de um é a violação do todo, de proteção aos administrados contra os abusos punitivos estatais em quaisquer das órbitas de sua intervenção sancionadora. Este mesmo todo resultante da conexão entre tais princípios também orienta a inaplicabilidade da máxima tempus regit actum quando nova lei, penal ou extrapenal, produza efeitos jurídicos de abolição ou suavização de enunciados normativos sancionadores.


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