Acordo de não persecução penal, no que consiste?
Acordos de não persecução penal têm feito parte da rotina forense criminal desde o surgimento deste instituto da justiça consensuada no cenário normativo do processo penal brasileiro.[1]
Aos milhares, segundo dados publicados pelo Ministério Público dos Estados e da União, o que permite dizer que milhares de pessoas, que até então raramente se viam realizando serviços comunitários, efetuando prestações pecuniárias, ressarcindo vítimas e devolvendo produtos de crimes praticados, tornaram-se sujeitas a tais condutas devido à incidência concreta, ágil e eficaz da lei penal viabilizada pelos acordos, em proveito da higidez da ordem jurídica, das pessoas atingidas pelo delito, da sociedade e do Estado.
Abreviadamente ANPP, consiste num ajuste entre o Ministério Público e o investigado por crime sem violência física ou grave ameaça e cuja pena mínima seja inferior a quatro anos, assistido por advogado e homologado pelo juiz, de não persecução penal durante o período de tempo de cumprimento pelo investigado de determinadas condições modeladas em lei e negociadas pelas partes, e de extinção da punibilidade, promovida pelo Ministério Público, depois de inteiramente cumpridas as condições, sem qualquer registro em antecedentes ou perda de primariedade.
Assim, o investigado voluntariamente assume compromissos de prestação pecuniária, de serviços comunitários, de indenização à vítima e de entrega dos bens auferidos pelo crime, isolada ou cumulativamente, e o Ministério Público compromete-se a não promover a ação penal e a requer a extinção da punibilidade quando integralmente cumprido o ANPP.
Bem observa o promotor de Justiça Mauro Messias, em artigo intitulado “Condições possíveis de serem ajustadas em acordo de não persecução penal”, publicado no sítio da CONAMP, os acordos deveriam assumir a feição de acordos integrativos, tipo win-win (“ganha-ganha”), nos quais cada uma das partes tem o sentimento de haver atingido seus objetivos dentro de uma negociação criativa de valor para ambas, em vez de um processo ganancioso ou avarento, típico da negociação distributiva, que, segundo o articulista, predomina na prática diária.[2]
Afinado com o princípio da intervenção mínima, o ANPP mitiga o princípio da obrigatoriedade da ação penal, que se demonstrou inoperante diante da realidade do sistema punitivo nacional e dos ideais de Justiça e eficiência na persecução penal.
Até a edição da lei que alterou a disciplina da improbidade administrativa e criou o acordo de não persecução cível (ANPC – art. 17–B), o ANPP era a etapa mais recente do processo de expansão da justiça consensual no Brasil, iniciado pela Lei 9.099/95, responsável pela inserção no sistema penal acusatório de instrumentos de política criminal recomendados por diplomas internacionais, como as Convenções de Mérida e de Palermo, tendentes a incentivar os réus a colaborarem e que otimizam o cumprimento do ofício criminal pelo Ministério Público não obrigatoriamente pela via única da ação penal estigmatizante, mas por outras alternativas igualmente adequadas e eficientes em termos preventivos, repressivos e de ressocialização.
Diferentemente de outros institutos mais benignos, não convive com interpretação de que, satisfeitas as exigências legais, constitua-se o ANPP em direito subjetivo, numa faculdade outorgada pelo direito objetivo ao investigado. Razão está em que o art. 28-A, do CPP, preceitua que o Ministério Público poderá e não deverá propor ou não o acordo, pois é o titular absoluto da ação penal pública.
O processo penal brasileiro tem na acusação pública sua principal fonte de instauração. Por consciente opção do legislador constituinte, regra geral, a ação penal é exercida privativamente pelo Ministério Público. Na legislação penal, são poucos os crimes que excepcionam a regra, demandando, para o processo, a iniciativa acusatória privada. No exercício da acusação pública, o Ministério Público é o próprio Estado, detentor de parcela de soberania estatal que o poder de acusar expressa. Poder que não é arbitrário, mas vinculado aos padrões estabelecidos pela lei processual penal, cujo exercício deve ser em absoluto respeito ao primado da dignidade da pessoa humana e a outros caros princípios estruturantes do processo penal proclamados pela mesma Constituição que o assegura.
Do poder de acusar, reconhecidamente decorrem poderes implícitos, tais como de promover o arquivamento do expediente investigatório, desenvolver investigação criminal própria e requisitar a instauração de inquéritos e diligências.
O ANPP insere-se dentre estes poderes implícitos, de implementação de política criminal despenalizante que viabiliza soluções penais ágeis e proporcionais aos delitos de média gravidade fora do processo judicial. Na dicção do STF, o art. 28-A é muito claro ao estabelecer que o Ministério Público “poderá” propor acordo de não persecução penal, desde que “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”, mediante condições. Não determina ao Ministério Público nem garante ao investigado direito subjetivo em celebrá-lo. Simplesmente permite ao parquet a opção, devidamente fundamentada, entre denunciar ou realizar o acordo, a partir da estratégia de política criminal adotada pela Instituição.[3]
Em face deste contexto constitucionalizado do processo penal, ao juiz ou tribunal é vedado substituir o Ministério Público em atuação privativa da Instituição.
Portanto, o ANPP não pode ser obtido pela via judicial em sede de habeas corpus, mandado de segurança ou qualquer outra modalidade de ação: “É vedada a substituição da figura do Ministério Público pela do juiz na celebração do acordo de não persecução penal, instrumento jurídico extrajudicial concretizador da política criminal exercida pelo titular da ação penal pública cuja homologação judicial tem natureza meramente declaratória.”[4] Nem pode ser a celebração do acordo uma ordem judicial.[5] Tal qual se dá na promoção de arquivamento, a palavra final é do Ministério Público (art. 28 do CPP), exclusivamente. Isso não significa, porém, que a recusa do agente ministerial à sua celebração seja definitiva, irrecorrível, transformando o redondo em quadrado. Pode ser reexaminada, mas mediante recurso administrativo e pelo próprio Ministério Público, por seus órgãos superiores.
Utilitariamente, o instituto milita em favor não somente dos envolvidos no pacto, também em proveito da vítima, da sociedade e na defesa da ordem jurídico-penal.
Em relação ao investigado, evita seja submetido ao banco dos réus, às agruras do processo penal e ao risco de prisão decorrente de sentença penal condenatória.
À vítima, personagem do drama criminal quase sempre esquecida, dá visibilidade e prestígio, proporcionando-lhe a recuperação da coisa ou o recebimento de indenização sem prévio processo judicial, além de informação da homologação e eventual descumprimento.
Como instrumento resolutivo ágil e hábil, favorece a atuação do Ministério Público na defesa da ordem jurídica aos crimes de mediano poder ofensivo e viabiliza a priorização da persecução penal aos mais graves.
Ao Estado e à sociedade, confere maior eficiência à resposta ao delito, enseja rapidez e efetividade na recuperação de bens, instrumentos, produtos ou proveitos do crime, diminui o custo operacional da justiça criminal e do sistema prisional, arcado pelos impostos pagos pelos contribuintes, e decisivamente contribui na redução do imenso volume de processos que abarrota, emperra e torna o sistema punitivo nacional objeto de descrença e insegurança no seio comunitário.
[1] Instituído pela Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, depois consolidado pela Lei 13.964/19 – Pacote Anticrime.
[2] www.conamp.org.br/publicacoes/artigos-juridicos/6937-condicoes-possiveis-de-serem-ajustadas-em-acordo-de-nao-persecucao-penal-6937.html
[3]AgR no HC 195.327, relator Ministro Alexandre de Moraes, publicado em 13/4/2021.
[4]STJ, AgRg no HC 685200/RJ, Quinta Turma, relator Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, julgamento em 24/08/2021 e DJe 30/08/2021.
[5] STF, HC 194.677/SP, Segunda Turma, relator Ministro GILMAR MENDES, julgado em 11/05/2021, Informativo STF 1.017.