As séries HOSTAGES e THE ENEMY WITHIN e a coação moral irresistível – art. 22 do CP.

HOSTAGES.

A série televisiva Hostages, em sua versão israelense, narra situação de coação moral por uma médica cirurgiã, a Dra. Yael Danon.

Em meio a uma conspiração política, tem a família tomada como refém por encapuzados e é ordenada a assassinar Shmuel Netzer, prestigiado Primeiro-Ministro de Israel, durante cirurgia na manhã seguinte para a qual fora destacada e que representava o ápice da sua carreira, sob pena de morte do marido, dos filhos e dela própria.

Na versão americana, Ellen Sanders é renomada cirurgiã de um hospital de Washington e responsável por operar o Presidente dos Estados Unidos, mas, da mesma forma, o que deveria ser uma honraria profissional, transformou-se em pesadelo pessoal e familiar.

Envolvida numa conspiração política comandada de dentro da Casa Branca, vê o marido e os três filhos levados como reféns e os sequestradores ameaçam a vida de todos se ela não seguir as instruções para o homicídio.

THE ENEMY WITIHN.

A série The Enemy Within, envolve a situação vivida por Erica Shepherd, diretora adjunta de operações da CIA, que foi banida da organização e encarcerada numa prisão de segurança máxima por participação nos homicídios de quatro dos seus agentes, mediante a revelação de seus nomes ao terrorista Mikhail Vassily Tal, quando por ele moralmente coagida a informá-los sob a ameaça de morte da filha que sequestrara.

Erica, embora não quisesse a morte de seus colegas de CIA, por uma vontade ainda que não inteiramente livre e viciada pela coação moral irresistível, quis revelar seus nomes mesmo sabendo que o terrorista iria matá-los, por vingança de um atentado que haviam frustrado, o que acabou acontecendo.

A COAÇÃO MORAL IRRESISTÍVEL

1. Natureza jurídica.

A coação moral irresistível é uma causa de exclusão da culpabilidade prevista na primeira parte do art. 22 do CP, sendo a culpabilidade, juízo de reprovação da conduta, pressuposto da imposição da pena.

Exclui a culpabilidade pela falta de liberdade moral do coato para agir em conformidade com a norma, no homicídio “não matar”, embora sabendo ou podendo saber que é ilícito matar alguém, decorrente da grave e de iminente execução a ameaça que sofre.

Traduz uma situação de não-exigibilidade. A exigência de comportamento adequado ao comando normativo requer a normalidade das circunstâncias fáticas ao tempo da formação da vontade e realização da conduta. A ordem jurídica jamais pode prescindir de um vínculo com a realidade história na qual a pessoa age.

Desse modo, quanto maior ou menor for o grau de normalidade das circunstâncias, maior ou menor o grau de exigência de conformidade da conduta com o direito, e, portanto, também maior ou menor a culpabilidade e a quantidade da pena.

Todavia, quando as circunstâncias concretas do episódio em que a pessoa se vê envolvida são de tão alta anormalidade a ponto de excederem a natural capacidade humana de resistência às pressões externas, a exigibilidade transmuda-se em inexigibilidade, pelo reconhecimento de que, frente à anormalidade da situação fática, não poderia realizar ação distinta da realizada, não havendo culpabilidade nem pena, por consequência.

Imagine a complexa situação moral de quem, ao chegar num posto de combustíveis com o filho, seja surpreendido por terceiro armado e dele receba a ordem para entrar na loja de conveniência e subtrair o dinheiro do caixa, sob pena de matar o filho, em cuja cabeça encosta o cano do revólver. Em tais circunstâncias fáticas, mesmo sabendo que a conduta de subtrair coisa alheia móvel é comportamento avesso à ordem jurídica, o coato certamente não teria como deixar de cumprir a determinação do coator, pois a outra face da moeda seria a morte de seu filho.

Na série The Enemy Within, a ex-diretora da CIA não resistiu à coação e acabou cedendo sua vontade à vontade do coator, numa típica situação de exclusão da culpabilidade pela coação moral irresistível, sendo o reconhecimento da gravidade e seriedade da realidade histórica vigente por ocasião da formação da vontade e cometimento da conduta de cunho jurídico e exclusivo encargo do juiz, não do coato.

Nas duas versões da série Hostages, a doutora não sucumbiu à coação.

2. Vontade não inteiramente livre.

A vontade, elemento psicológico imprescindível na conduta, deve estar presente no fato, pois, sem este impulso anímico e força motriz necessária, não há conduta e, sem conduta, não há crime, uma vez que o crime não é um simples evento físico ou resultado mecânico. É um evento dominável pela atuação da vontade, que não precisa ser inteiramente livre, sem vícios ou defeitos.

Na coação moral irresistível, o coato, em virtude do invencível constrangimento que o coator exerce sobre sua psicologia, constrói uma vontade viciada, não livremente formada, mas irrecusável diante do sério risco de sofrer grave mal ou de permitir que este se produza, e em breve, a terceira pessoa, à qual se vincula emocional ou juridicamente, como reprimenda à sua não submissão à vontade do coator.

No entanto, poderia construir vontade diversa, de não subjugação ao coator, e dominar a conduta típica e antijurídica realizada, ainda que ao elevado custo da consumação do mal ameaçado. Por isso, mesmo sem culpabilidade, o fato cometido sob coação é típico e antijurídico.

3. Ameaça, gravidade e iminência de transformar-se em fato da realidade.

O mal ameaçado deve ser reconhecidamente grave e de iminente concretização, de modo a produzir um efeito moral de irresistibilidade ao coato.

Irresistibilidade, significa inevitável, insuperável ou inelutável. Força externa da qual não se pode subtrair.[2]

Levam-se em consideração, na sua avaliação, feita pelo juiz, as condições pessoais e mentais do coato: “As condições de resistir ou não devem ser examinadas concretamente, diante das condições psicológicas do ameaçado, verificando-se se as condições mentais deste permitem ou não vencer o mal prometido”[3], pois “o direito não pode impor ao indivíduo a atitude heroica de cumprir o dever jurídico, qualquer que seja o dano a que se arrisque”[4]. Iminência, significa que, se o coato se recusar, o coator tem condições de cumprir a ameaça em seguida, por si ou interposta pessoa.

4. Comprovação da excludente.

A excludente deve ser substancialmente comprovada por elementos sensíveis, não bastando a sim­ples versão do coato. Caso contrário, isto é, se não fosse necessária a comprovação da coação e irresis­tibilidade por quem alega, haveria risco de uma in­falível e injusta válvula de escape, garantia de impu­nidade, pois bastaria que o réu alegasse ter sido coagido para ser absolvido.

5. Personagens da coação moral irresistível.

Três personagens figuram na coação moral irresistível:

  • Coator, uma pessoa física e não entidade jurídica ou espiritual, fenômeno meramente psíquico (hipnose) nem a sociedade (“coação moral da sociedade”) como ente que impulsiona o agente a praticar o fato ilícito. 
  • Coato, a pessoa que comete o fato típico e antijurídico, coagido pela grave, série e iminente consumação de ameaça a direito próprio ou de terceiro.
  • Vítima da conduta realizada sob coação, pessoa titular do bem jurídico violado pela conduta do coato.

[1] Princípios Básicos de Direito Penal. 5 ed 19 tir., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 82-83.

[2] Mero receio de perigo, mais ou menos remoto, não a configura como excludente da culpabilidade, podendo, porém, produzir efeito na quantificação da reprimenda, à título de atenuante, conforme art. 65, inc. III, alínea “a”, primeira parte, do CP.

[3]Revista de Jurisprudência do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, vol. 49, p. 384.

[4] Revista dos Tribunais. São Paulo, vol. 572, p. 354.

[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, v. 1, págs. 362-363.

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