ROUND 6, sob o prisma penal, permite uma “série” de comentários.
A série coreana ROUND 6[1], assistida em 94 países e 146 milhões de residências[2], sob o ponto de vista penal permite uma “série” de comentários.
1. O motivo determinante do crime.
Em matéria penal, motivo é a causa moral, o “porquê” do crime, antecedente psíquico que determina a formação da vontade que a conduta exterioriza na realidade social.
Confere colorido jurídico e moral a todo o ato humano. É variável caso a caso, de indivíduo a indivíduo conforme o sentimento de cada um, em relação ao mesmo tipo básico de delito, mas sem alterar sua estrutura.
O homicídio doloso, que consiste na conduta intencional de matar alguém, não sofre alteração nesta sua estrutura conceitual em razão do motivo determinante.
O querer matar, como dado subjetivo, e a realização da conduta causadora da morte, como dado objetivo, cuja junção resulta no fato penal do homicídio, não se alteram, são os mesmos quando o filho mata o pai motivado por ganância, querendo antecipar o recebimento da herança, ou por compaixão, ante os pedidos insistentes e pungentes de que acabasse com seu atroz e irremediável sofrimento.
2. Sopeso legal dado ao motivo determinante.
Assim, a valoração jurídica do motivo determinante repercute na quantificação da reprimenda, na quantidade da pena, enquanto o dolo, como vontade de realizar a conduta delituosa, é estanque, o mesmo, repercutindo no enquadramento penal do fato.
O homicídio, podendo resultar dos mais diversos impulsos da alma humana, é o tipo de crime que permite o maior leque de possibilidades de motivações determinantes.
Motivos sociais e antissociais, morais e imorais, da comiseração à vingança, do altruísmo à vaidade criminal, têm determinado o ato de matar no curso da história da humanidade.
A lei brasileira confere o devido sopeso aos motivos determinantes, conforme consta dos §§ 1º e 2º do art. 121 do CP.
Se o motivo de matar é humanitário, pelo sentimento de comiseração do agente com o grave e irrecuperável estado de saúde da vítima, homicídio eutanásico, a lei fixa menor quantidade de pena para o autor, reconhecendo uma modalidade privilegiada do delito.
Se é torpe, pelo baixo e repugnante sentimento da paga ou promessa de recompensa, homicídio mercenário, ou fútil, pela sua gratuidade e grassa desproporção com o resultado da conduta, como no homicídio motivado na recusa da vítima, dona de um bar, a vender fiado, a lei fixa maior quantidade de pena ao autor, reconhecendo uma modalidade qualificada do delito.
3. A “diversão torpe” como motivo determinante.
No capítulo final de ROUND 6, toma-se conhecimento de que os jogos foram idealizados, financiados, organizados e executados por um grupo de pessoas muito ricas, comandado por OH II-NAM, o amistoso e simpático velhinho parceiro do personagem principal, SEONG GI-HUM, por pura, mas profundamente torpe, “diversão”. A vida perde graça quando podemos fazer ou consumir tudo que se queira. É curta e precisa ser divertida, disse OH II-NAM, em seu leito de morte, ao revelar o motivo que o levara, com seus companheiros milionários infelizes, a tão dantesco episódio de violação à dignidade da pessoa e da vida humana.
O desejo de constituir, financiar, integrar e fazer funcionar um grupo organizado para matar pessoas através da disputa de jogos infantis, como e para “divertimento”, é motivação torpe, pois vil, ignóbil, asquerosa, abjeta, nojenta. Provoca aversão ou repugnância ao sentimento ético da sociedade. É moralmente reprovável, demonstra depravação e perversidade de caráter. Luxúria, cupidez, prazer do mal ou em ver a vítima sofrer, vaidade criminal, ódio de classe, são outras hipóteses de motivação torpe.
A todos os membros do grupo organizador de ROUND 6, nos crimes que lhes sejam atribuíveis, a torpeza do motivo determinante é dado jurídico constante e relevante
4. Associação de pessoas para implementação de projeto comum.
Dentre as garantias fundamentais individuais asseguradas pela Constituição Federal, está a “plena a liberdade de associação para fins lícitos, exceto a de caráter paramilitar” (art. 5º, inc. XVII), reconhecidamente vinculada aos princípios de proteção da dignidade da pessoa, de livre iniciativa, da autonomia da vontade e da liberdade de expressão, de igual status constitucional.
É direito de cada um de nós, para implantação, desenvolvimento e conservação de um projeto comum, econômico ou não, livremente constituir e formar associação de pessoas nos mais diversos terrenos da vida social (religiosas, filantrópicas, de classe, de proteção de direitos humanos, do consumidor, do meio ambiente, empresas comerciais, industriais e de prestação de serviços etc.).
Porém, essa mesma liberdade não temos quando a finalidade associativa é ilícita, razão pela qual a lei penal incrimina o fato de pessoas se reunirem e formarem uma união estável ou duradoura com a finalidade de cometimento de crimes, embora não perpétua e sem a necessidade de efetiva realização de um só dos crimes-fins. Incriminação que resulta não só da ilicitude em si da finalidade associativa, mas, também, pela circunstância que a constituição de grupo de pessoas assim inspirado, mesmo que nenhum dos crimes associativos fins venha a ser cometido, submete determinados e relevantes bens ou interesses a risco de dano. Para evitar o risco e sua transformação em dano, função preventiva da pena criminal, a lei institui correspondentes figuras delitivas com a cominação da privação de liberdade.
5. Associação criminosa.
É o caso da “associação criminosa”, figura penal criada há vários anos na legislação penal brasileira para proteção da paz pública. Associações de pessoas para o fim de matar, roubar bancos ou assaltar veículos de cargas ou valores, por exemplo, criam temor generalizado, perturbam a tranquilidade e traumatizam as pessoas.
Definida no art. 288 do CP, configura-se a associação criminosa pela aliança de três ou mais pessoas, com certa estrutura e comando, ainda que sem maiores requintes organizacionais, para o fim específico de cometer crimes, no plural. O desígnio de cometer apenas um não daria a tonalidade necessária ao delito, dizia Noronha há quase quarenta anos,[3] caracterizando “concurso eventual de pessoas, coautoria ou participação delitiva”, matéria diversa e regrada pelo art. 29 do CP.
6. Organização criminosa.
Outra espécie de infração penal associativa, é a “organização criminosa”. Prevista na Lei 12.850/2013, de existência bem mais recente no direito brasileiro, de maior punibilidade e exigências de configuração do que a “associação criminosa”, a começar pelo número mínimo de participantes.
Considera-se organização criminosa a associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional (art. 1º, § 1º).
Requer estrutura ordenada, com pessoas no comando e pessoas subordinadas, cada qual com papéis ou funções a desempenhar dentro do grupo, numa divisão de tarefas, ainda que informalmente. O objetivo é o de obtenção de vantagem de “qualquer natureza”, seja de forma direta ou indireta, não necessariamente econômica ou financeira, a ser alcançada mediante a prática de infrações penais, de caráter transnacional, por atuação em mais de um país, ou com quantidade máxima da pena superior a quatro anos, não havendo organização criminosa para delitos menos severamente sancionados.
As formas legais de participação consistem em “promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa” (art. 2º).
A pena cominada é de reclusão, entre 3 e 8 anos, além de multa e sem prejuízo das sanções correspondentes às demais infrações penais praticadas. Sobre a pena cominada, incide aumento, até metade, se na atuação da organização criminosa houver emprego de arma de fogo (§ 2º), e agravante, para quem exerce o comando, individual ou coletivo, da organização criminosa, ainda que não pratique pessoalmente atos de execução (§ 3º).
7. Associação e organização.
Enquanto no crime de “associação” a finalidade é a de cometimento de crimes, no delito de “organização” é de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais. A “organização” se estrutura e funciona como empresa, cuja matéria-prima é o crime e a vantagem o lucro.
8. ROUNG 6, é uma organização criminosa. [4]
A associação de pessoas que ROUND 6 envolve, corresponde à figura penal da “organização criminosa”, uma vez que preenche todos os requisitos legais para a configuração deste tipo de delito associativo.
8.1. Reúne pessoas de forma estruturada e cadeias de comando.
Mais de quatro, é o número de pessoas que compõem a organização responsável pelos jogos. Aliás, são algumas dezenas de membros, computando-se financiadores, anfitrião, líder e subordinados com suas vestes em vermelho.
Estruturalmente, num modelo em que alguns financiam, outros comandam ou são comandados, inclusive com hierarquia entre estes, cabendo a todos, conforme núcleo integrado, tarefas ou funções específicas, de cujo cumprimento dependia o êxito da empreitada comum.
8.2. Associação estável, permanente ou duradoura.
Nas cenas em que o policial HWANG JUN-HO, que furtivamente entrara no prédio dos jogos na busca do irmão desaparecido, encontra, na área do líder, vasto material de registros dos certames realizados, vê-se que a organização é estável, permanente e duradoura, pois constituída no longínquo ano de 1988 e operante desde então. Na pasta da 28ª edição, em 2015, descobriu que o irmão foi o vencedor. Mais tardiamente, após fugir do prédio e durante perseguição por alguns membros, também descobriu que o irmão se tornara o líder da organização, pouco antes de ser pelo próprio assassinado.
8.3 Objetivo da organização.
Ao definir “organização criminosa”, embora já tenhamos feito menção, a lei sinaliza, como objetivo direto ou indireto, a obtenção de “vantagem de qualquer natureza” (art. 1º, § 1º), o que permite a inserção da “diversão” diretamente objetivada pelos financiadores na sinonímia da “vantagem”, sem prejuízo, porém, também da obtenção indireta de vantagens financeiras, especialmente pelos participantes não integrantes do núcleo duro, o financiador.
8.4. Mortes dos participantes como matéria-prima.
Consequência ao final de cada disputa, é a morte do perdedor ou desclassificado. Não opção. Perde o jogo e perde a vida.
A organização tem, portanto, no cometimento do homicídio dos participantes dos jogos, a matéria-prima da odiosa satisfação objetivada, e o homicídio é crime cuja pena máxima supera a quatro anos, tal qual exige a descrição legal de configuração do delito (“mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos” – § 1º do art. 1º).
9. Organização criminosa armada.
Reconhecida a formação da organização criminosa, não se tratando, portanto, de requisito configurador, pela atuação com emprego de arma de fogo, há um aumento da pena para todos os membros, em até metade (art. 2º, § 2º), uma vez que, em ROUND 6, a atuação armada é marcante, frequente e enseja cenas de horror pela sua imoderação. Só não houve o acionamento de gatilho no “cabo de guerra”, substituído pela guilhotina, e na “ponte de vidro”, em que as mortes foram pela brutal queda dos participantes que pisaram nas peças não temperadas.
10. Alcance da responsabilização penal por organização criminosa.
A responsabilidade penal atinge todas as pessoas que, por si ou interpostas, promoveram, constituíram, financiaram ou integraram o grupo para realização dos jogos, que compuseram a estrutura, mantiveram a estabilidade e operaram o funcionamento organizacional, inclusive os VIPs. Salvo equivocada interpretação nossa, não são clientes da organização pelo só acompanhamento online dos primeiros jogos ou assistência presencial nas disputadas finais, com apostas entre si , mas membros financiadores da organização, e, por isso, tidos por VIPs.
11. Homicídios pelos membros do grupo criminoso.
Também, todos os membros da organização respondem pelos 441 homicídios ocorridos durante os jogos, por agirem com consciência e vontade na consecução desta macabra obra comum, mesmo quando fisicamente cometidos entre participantes dos jogos, pois criaram o ambiente de hostilidade desencadeador, que, inclusive, monitoravam através de câmeras.
Sabiam, todos eles, do desfecho mortal para os perdedores de cada rodada, que só sobreviveria um ao final.
Vários, por sinal, foram executores dos gestos homicidas.
Dos 456 disputantes, 14 não retornaram aos jogos depois da desistência votada pela maioria diante da tragédia de letalidade causada pelo “Batatinha Frita 1,2,3”. Exceto o vencedor SEONG, foram todos assassinados.
A propósito do fato matar alguém, nossa lei não lhe confere o título “assassinato”.
O CP designa homicídio todas as modalidades do delito. E, “homicídio qualificado”, para a mais grave delas, que outras em legislações recebe o nome de “assassinato”, “homicídio em primeiro grau”, “morde”, “capital murder” ou “first degree murder”.
Sobre o vocábulo “assassino”, dizia Nelson Hungria preceder de “haschischino,” designação dada pela população aos sicários contratados por Hassan-Ben-Sabbah, chamado o Sheik da Montanha, na Síria, que lhes propinava o “haschisch” (haxixe) para fazê-los mais dispostos, valentes, cruéis e impiedosos, como forma de dominá-los, aos seus desígnios homicidas, pela necessidade de satisfação do vício. No séc. XI, o Sheik da Montanha comandava o que hoje chamamos de organização ou associação criminosa, reunião de pessoas entre si ajustadas para o cometimento de assassinatos caracterizados pela elevada crueldade, impondo medo e terror na região de sua influência.[5]
Diferente, para o escritor libanês Amin Maalouf, autor de Samarcanda, obra traduzida e editada pela Editora Brasilense em 1991, a verdade é outra. Hassan-Ben-Sabbah chamava “assassiyun” aquele que era fiel ao “Assass”, ao fundamento da fé, e esta palavra, mal compreendida pelos viandantes estrangeiros, é que pareceu ter um ressaibo de haxixe.
12. Homicídios qualificados pela torpeza do motivo determinante.
Os 441 homicídios são qualificados pela “torpeza” do motivo determinante (inc. I do § 2º do art. 121 do CP), de divertir e satisfazer o grupo endinheirado dos financiadores, à custa da vida humana.
Atuaram, todos os membros da organização criminosa, fazendo dos homicídios em massa o meio de realização do objetivo organizacional, a tal da diversão, pelo prazer de mandar ou de diretamente executar a ordem de matar; pelo prazer, satisfação e divertimento, em assistir espetáculo mortal de centenas de pessoas desarmadas e desprotegidas. Sentimentos profundamente reprováveis, pela depravação de caráter que revelam habitar na alma de todos eles. Motivações hediondas, de intensa imoralidade, movimentaram a conduta de todos.
13. Homicídios qualificados pela surpresa do ataque letal.
Além de qualificados pela torpeza, os primeiros 255 homicídios, considerando que no jogo Batatinha Frita 1,2,3 não foi informado aos participantes que seriam mortos caso flagrados em movimentação quando a boneca eletrônica encerrasse a contagem e se voltasse ao elenco dos disputantes, ou não chegassem em cinco minutos à linha demarcada para classificação na disputa, são também qualificados pelo “modo” de execução surpreendente (inc. IV do § 2º do art. 121 do CP), que impediu as vítimas de qualquer gesto em defesa de suas vidas. A lei penal pune com maior rigor o ataque mortal que pega a vítima insciente de tamanho risco.
14. Homicídios pelos participantes dos jogos.
Homicídios também foram praticados entre si por “alguns” disputantes, com responsabilidade pena exclusivamente pessoal, nos jogos do “cabo de guerra”, no “gude”, na “ponte de vidro”, na disputa final, o “jogo da lula”, no alojamento e no local em que os três finalistas jantaram.
No “cabo de guerra”, quando os membros de uma equipe mataram os dez membros da outra, não importando fosse o cabo, que mantinha os perdedores suspensos e vivos, cortado pela guilhotina acionada por pessoa integrante da organização, nem que as mortes tivessem decorrido das lesões provocadas pela queda de elevada altura, pois sabiam os participantes vitoriosos, mesmo somente em instante imediatamente anterior ao início da disputa, que, para sobreviverem, teriam que colocar os adversários em tal suspensão e que o cabo logo após seria cortado, ocasionando suas quedas e mortes. Deram causa e quiseram realizar as condutas que poderiam levar os adversários a morte, como consequência e certa conectada à finalidade de vitória. Se não tivessem vencido e colocado os adversários naquelas condições, eles não teriam morrido da maneira que morreram.
O corte do cabo, além de previsto, estava no também previsto desdobramento físico de suas ações, a queda e morte dos perdedores, não servindo para exclui-los de responsabilidade pelos dez homicídios.
Aos fins de atribuição a alguém do fato-crime do homicídio, é preciso agregar à sua conduta, como resultado produzido, a morte da vítima.
Uma pessoa pode atirar em outra com a intenção de matá-la, com êxito de pontaria e causação de ferimentos graves. Mas, se a morte da pessoa assim vitimada ocorrer por queimaduras sofridas durante incêndio no hospital em que se encontrava internada para tratamento das lesões, o autor dos disparos não responde por homicídio consumado, e sim por tentativa de homicídio, tendo em conta que a ação dos disparos não foi a causa da morte. Entre os disparos e a morte, surgiu uma outra causa, que, mesmo dependente da conduta do agente, pois, não fossem os tiros a vítima não teria sido levada a hospital, tomou para si, autonomamente, a produção do morte. Submeter-se a incêndio não seria ordinário e, portanto, previsível desdobramento físico ou anatomopatológico das lesões produzidas pelo disparo de arma de fogo. Aí a autonomia da causa posterior.
A relação de causalidade é matéria regrada pelo art. 13 do CP. Da disciplina consta que a superveniência de causa relativamente independente (aquela ocorrida depois da ação do autor, o corte do cabo pela guilhotina) somente exclui a imputação (aos vitoriosos, pelos homicídios dos dez participantes perdedores) quando tenha, por si só, produzido o resultado (as mortes).
Não foi o que ocorreu em ROUND-6. O corte do cabo era conhecido desdobramento físico que se somaria às condutas que colocaram os adversários em suspensão para produção conjunta das mortes. Somente seria excluída a relação de causalidade iniciada pelas ações dos vitoriosos, e não seriam eles responsabilizados pelos dez homicídios, caso as mortes dos adversários tivessem sido produzidas por causa absolutamente estranha, sem uniformidade com a sequência previsível dos fatos cometidos durante a disputa do cabo de guerra, fora de uma cadeia unilinear e sem correspondência lógica.
Nestes homicídios, e também naqueles no jogo do “gude” (dez ocorrências), na “ponte de vidro” (quatro ocorrências), no “alojamento” (quinze ocorrências) e no salão de jantar, envolvendo disputantes como sujeitos ativos e passivos do delito, os membros da organização não ficam à margem de responsabilização. Isto porque, determina o art. 29 do CP, quem, de qualquer modo concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida da sua culpabilidade.
15. Cadáver como objeto material de crime.
Constituem delito, por ofensa ao sentimento de respeito aos morte, as ações de destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele, para as quais o art. 211 do CP comina pena de 1 a 3 anos de reclusão, e multa.
Em ROUND 6, os cadáveres eram incinerado e destruídos depois do encerramento de cada jogo. Todos os integrantes da organização, não importando quem dentre eles destruiu este ou aquele cadáver, tinham conhecimento pleno da destinação dos corpos e estavam no local de ocorrência das incinerações, cujos mecanismo de funcionamento foram instalados pelo próprio grupo criminoso. Respondem pelo crime, cometido no mesmo total dos homicídios perpetrados.
16. Subtração de órgãos.
Aqueles membros do grupo que, sem o conhecimento dos demais, furtivamente removeram tecidos, órgãos ou partes dos corpos de participantes, respondem, em coautoria (art. 29 do CP), pelo delito previsto na Lei 9.434/97, tantas vezes quanto tenham ocorrido, com pena de 2 a 6 anos de reclusão (art. 14), agravada pela paga ou promessa de recompensa através da posterior venda visada (§ 1º do art. 14).
Também respondem por crime previsto na mesma Lei, aqueles que, não integrando a organização, compraram tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para os quais a sanção é mais elevada, entre 3 e 8 anos de reclusão (art. 15).
17. Consentimento dado pelos participantes.
O consentimento dado pelos participantes a ações que se voltassem contra a integridade corporal, ou através das suas assinaturas no documento que continha as três regras dos jogos (1 – o jogador não pode parar de jogar; 2 – quem se recusa a jogar será eliminado; 3 – a maioria decide se quer encerrar os jogos), são juridicamente destituídos de qualquer valor.
A vida é a fonte primeira de todos os outros bens jurídicos titulados pelo ser humano. Clássica referência feita pelos autores, é a de que todos os direitos partem do direito de viver.
Mesmo não seja um valor absoluto, tendo em vista que a CF admite a pena de morte no caso de guerra e o CP o aborto em duas situações, o necessário e o humanitário, incontestável sua primazia para o indivíduo, sociedade e o próprio Estado.
Sem vida não há indivíduo, personalidade ou direitos individuais. Sem o indivíduo não há sociedade organizada nem Estado.
Determina a CF que o ciclo vital deve fruir naturalmente, sem interrupção, até a morte espontânea e inevitável, como direito fundamental que nenhuma emenda constitucional pode abolir.
Como valor social, a vida é protegida pelo ordenamento independentemente da vontade do titular. Prova disso, a legislação penal não reconhece validade no consentimento destrutivo do titular e incrimina a eutanásia.
Sobre à renúncia à tutela jurídica da integridade corporal ou da saúde, grande número de escritores de direito penal consideram-na indisponível.
Para rebatê-los, argumenta-se que a autolesão é fato impunível, indagando-se, então, qual seria a diferença se a vítima da lesão permitisse que terceira a causasse da mesma forma que o faria se não contasse com a sua colaboração?
Tal não procede. Se assim fosse, a mesma lei que não pune o suicida não puniria quem induz, instiga ou auxilia a prática do ato extremo. E, especialmente improcede, porque os tipos legais de delito, regra geral, descrevem condutas de terceiros, não do próprio titular do bem ofendido, o que conduz à conclusão de que a disponibilidade deve ser aferida em relação à conduta de outra pessoa.
Independentemente de escolha por uma ou outra destas posições doutrinárias, a validade do consentimento dado a terceira pessoa, permissiva de agressão à integridade do corpo ou da saúde, dependeria de que a ação consentida fosse em benefício do próprio titular do bem, com vista à recuperação ou melhoria da saúde e do equilíbrio psicofísico, de terceiras pessoas determinadas, por meio dos transplantes, ou em benefício de terceiras pessoas indeterminadas, nas hipóteses de experimentação científica. Nenhuma dessas condições pode ser reconhecida em ROUND-6.
Aproveitando para ilustrar a questão do consentimento e a diversidade de enfoques jurídicos, autores narram episódio de lícito transplante experimental, ocorrido em Nápoles, em que um jovem, então com 25 anos de idade, “por dinheiro”, doou um de seus testículos a americano de bem mais idade.
O transplante foi coroado de êxito. O rapaz continuou a ter uma vida normal, inclusive sexual, e o receptor recuperou o seu vigor sexual. O médico foi processado criminalmente e em duas instâncias absolvido, pelo reconhecimento judicial de que, mesmo tendo uma finalidade pecuniária, a doação atendeu a um particular valor social.
Para nós, o consentimento não teria qualquer validade jurídica, havendo crime pela ausência de finalidade terapêutica e humanitária (Lei dos Transplantes).
18. Extinção da punibilidade.
Punibilidade, significa a possibilidade estatal de imposição da pena a alguém, que surge a partir da prática de um modelo legal de crime.
Como nenhuma pena pode passar ou transcender à pessoa do condenado, garante a Constituição (inc. XLV do art. 5º), a ocorrência da morte extingue a punibilidade do agente do crime (art. 107, inc. I, do CP).
Assim, tendo em conta que dos participantes de ROUND 6 sobreviveu apenas um, o vitorioso, somente ele pode ser punido pelos homicídios para os quais concorreu. Quanto aos demais, operou-se a extinção da punibilidade.
19. Vitorioso no banco do réus.
SEONG GI-HUM, personagem principal da série, tendo sobrevivido, deveria ser penalmente processado pelos fatos delituosos de homicídio e lesões corporais para os quais concorreu, mesmo não tenha pessoalmente executado um só deles, nem de SANG, o amigo de infância com quem disputou a fase final da competição, no “jogo da lula”, morto a tiros pela organização.
É que, comprovada a ocorrência de um fato definido em lei como delituoso, o processo de apuração se impõe, inclusive para que, durante a instrução, possam ser apuradas justificativas para o ato ou causas de exclusão da culpabilidade do autor, notadamente quando se trata de crime doloso contra a vida, cuja competência constitucional para julgamento é do tribunal do júri.
19.1. Homicídios. Estado de necessidade. Tese absolutória.
Na sua defesa, poder-se-ia argumentar de um “estado de necessidade” nas dez mortes provocadas no cabo de guerra.
Colocado numa situação de inexigibilidade de outra conduta senão a de participar daquela rodada, se saísse seria assassinado pela organização conforme previsto na regra 2 dos jogos (quem se recusa a jogar será eliminado), para salvar de perigo atual à vida sua e dos nove outros membros da equipe, que não provocou por sua vontade, não podia de outro modo evitar, e cujos sacrifícios, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se, agiu ao abrigo de uma excepcional “justificativa” legal, que retira o caráter ilícito do fato homicídio, prevista como tal pelo art. 24 do CP, sob a rubrica “estado de necessidade”, ensejando, nos dez homicídios, a absolvição.
Por hipótese, se a promotor redarguisse, afirmando que SEONG GI-HUM não poderia beneficiar-se da justificativa penal em virtude de haver consentido com os riscos decorrentes, notadamente depois retorno aos jogos, quando detinha inequívoco conhecimento da brutalidade e mortalidade dos certames com os quais assentiu, pela voz da defesa deveria ser esclarecido aos jurados que o risco criado, impeditivo do reconhecimento do estado de necessidade, deve ser atual e concreto, não meramente suposto ou previsível pelo agente.
Além disso, mesmo tivesse SEONG causado o perigo, ainda assim poderia invocar a justificativa, considerando que a destruição das vidas, sua e dos colegas de equipe,, era vizinha da certeza, não enfrentavam uma mera possibilidade de dano ao bem jurídico da vida. Nem mesmo àqueles que tenham o dever de enfrentar situações de perigo o estado pode ser negado, ao enfrentarem situações em que o dano é fronteiriço com a certeza.
19.2. Lesões corporais. Legítima defesa. Tese absolutória.
Quanto às lesões corporais produzidas em companheiros do jogo, dentro do alojamento durante lutas travadas após o apagar das luzes, e em SANG, no “Jogo da Lula”, poder-se-ia invocar em favor de SEONG GI-HUM a legítima defesa, com igual efeito justificante dos fatos.
Prevista no art. 25 do CP, consiste na reação a agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou outrem.
As cenas de violência física não foram protagonizadas por SEONG nem pelo seu círculo íntimo. Foram por outros.
Ao reagirem fisicamente, provocando lesões nos agressores, fizeram em caráter preventivo, na defesa à integridade corporal e à própria vida.
Revidaram agressões atuais e injustas a direitos próprios e de terceiros. Injusta é a agressão que o direito não impõe, como é o caso da agressão à liberdade sofrida pela pessoa submetida a prisão preventiva, desde que adequadamente ordenada. Não sendo imposta pela ordem jurídica, o agredido, juridicamente, não tem o dever de tolerá-la, podendo, pois, reagir o tanto quanto for preciso para prevenir a consolidação do risco em dano.
Se, ainda assim, a promotoria insistisse na condenação de SEONG GI-HUM, alegadamente pela ausência de conformidade do seu comportamento global nos jogos com os modelos legais de estado de necessidade e legítima defesa, haveria uma terceira tese defensiva a colocar por terra, e de vez, a pretensão punitiva estatal.
19.3. Homicídios e lesões corporais. Inexigibilidade. Tese absolutória.
Nas circunstâncias, fosse em relação aos homicídios no cabo de guerra, fosse em relação às lesões corporais nas lutas noturnas e no jogo final, inexigível, de SEONG, comportamento respeitoso aos comandos penais de “não matar” e “não ofender” a integridade corporal de outrem.
A exigência de comportamento adequado requer a normalidade das circunstâncias fáticas ao tempo da formação da vontade e realização da conduta.
Assim, quanto maior ou menor for o grau de normalidade das circunstâncias, maior ou menor o grau de exigência de conformidade da conduta com o comando normativo, e, portanto, também maior ou menor a culpabilidade e a quantidade da pena. A ordem jurídica não pode prescindir de um vínculo com a realidade história na qual a pessoa age.
Nessa linha, quando as circunstâncias concretas do episódio em que a pessoa se vê envolvida são de tão alta anormalidade a ponto de excederem a natural capacidade humana de resistência às pressões externas, a exigibilidade transmuda-se em inexigibilidade, pelo reconhecimento de que, frente à anormalidade da situação fática, não poderia realizar ação distinta da realizada, não havendo culpabilidade, como expressão do juízo de censura, nem pena, como consequência.
20. Crime. Fenômeno jurídico. Elementos constitutivos.
Quando falamos em “crime”, tratamos de um fenômeno essencialmente jurídico, pois não há crime sem lei que o defina.
Fatos jurídicos não são apenas os lícitos, mas também os fatos ilícitos. O crime, nestes se encaixa. Assim, por mais gravoso ou repulsivo que determinado episódio da vida social possa ser ao bem jurídico, ou representar aos sentimentos comunitários, tudo será, menos um crime, se não houver lei que o defina como tal.
Juridicamente, configura-se pela realização de uma conduta descrita pela lei, contrária ao ordenamento penal e censurável ao seu autor.
Dito de outro modo, é o fato “típico”, por adequar-se à descrição feita pela lei, “ilícito”, em virtude da sua contrariedade ao direito penal, e “culpável”, pela reprovação ao seu autor.
Apontam-se, em decorrência, três elementos do crime: tipicidade, ilicitude e culpabilidade.
A culpabilidade pressupõe a ilicitude do fato e a antijuridicidade do fato deve estar concretizada no tipo legal, numa relação necessária e subsequente[6].
Tal qual a molécula da água, que depende, para a sua produção, da junção de duas partículas de hidrogênio e uma de oxigênio, a configuração jurídica do crime depende da junção da tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Faltando qualquer, não há crime.
O estado de necessidade e a legítima defesa, tendo por foco o fato, são causas que excluem a ilicitude. Consequentemente, o fato, apesar de típico, não é crime, pois lícito.
A inexigibilidade, com foco no autor do fato, exclui a culpabilidade. Daí que o fato, mesmo típico e ilícito, não é culpável ao seu autor.
A culpabilidade parte do conhecimento da ilicitude pelo agente, de que saiba ou possa saber que faz algo proibido, e se afirma pela exigibilidade, então decorrente, de que tivesse, nas circunstâncias, comportamento adequado à norma, completando-se, então, a estrutura jurídica do juízo de censura que expressa e permite a aplicação da pena.
Se o agente do fato não atua com conhecimento efetivo ou potencial da ilicitude, ou se, mesmo detendo este conhecimento, em circunstâncias excepcionais que lhe retirem a liberdade moral para agir de outro modo, culpabilidade não há.
[1] Informa a mídia que a produção da série custou US$ 21,4 milhões e o lucro ultrapassou os 4.000%. Exceto no Brasil, nos demais 93 países, tem o nome de “Squid Game”, em português e tradução direta do título coreano, “Jogo da Lula”. Indagações sobre o motivo da mudança no nome da série, se foi ou não por causa do ex-presidente Lula, foram esclarecidas pelo “Netflix” ao “Splash”, do UOL. Segundo a plataforma, ocorreu devido ao desconhecimento do “Jogo da Lula” no Brasil, o que poderia prejudicar uma conexão direta com o público. O nome ROUND 6, foi escolhido por fazer referência à quantidade de etapas presentes na competição da série.
[2] Tamanho tem sido o sucesso da série, que uma imitação da boneca YOUNGHEE foi instalada no Parque Olímpico de Seul, permitindo que fãs e curiosos experimentem o jogo Batatinha Frita 1,2,3.
[3] NORONHA, Eduardo Magalhães. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 91.
[4] No entanto, seria “associação” e não “organização”, para os operadores jurídicos que exigem, à configuração do crime de “organização”, a participação de agentes públicos em seu seio, como forma de inserção do grupo criminoso nas estruturas estatais políticas, hipótese inocorrente em ROUND 6.
[5] Comentários ao Código Penal, vol. V, p. 31.
[6] HANS WELZEL, Derecho Penal Alemán, p. 57.