“Eu morro de dó de você por ser negra …” – “Eu não vou falar com a sua pessoa, pois não converso com africanos, não falo com negros …”

Carlos Otaviano Brenner de Moraes.

Injúria racial.

O crime de injúria racial é previsto no art. 140, § 3º, do Código Penal, nos seguintes termos:

“Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.

§ 3º. Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: 

Pena – reclusão de um a três anos e multa.”  

As duas frases acima reproduzidas, ditas com nítido propósito ofensivo por parte do mesmo autor, a primeira dirigida a uma atendente e a segunda a um segurança do Terminal Pinheiros do metrô de São Paulo, consubstanciam práticas de injúria racial e deram azo à sua condenação penal, por sentença do Terceiro Juizado Criminal do Foro Central da Barra Funda, São Paulo, em 3 de novembro de 2021, nos autos do processo nº 1503622-13.2020.8.26.0228.

Injúria racial é espécie do gênero racismo.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, 8 x 1 votos, no julgamento de habeas corpus 154.248, encerrado em 28 de outubro de 2021, reconheceu a injúria racial como espécie do gênero “racismo”, em caso que envolvia uma senhora que, apesar dos seus 80 anos de idade, longo período de tempo que lhe deveria ter servido de aprendizado civilizatório no relacionamento humano, disse a uma frentista de postos de combustível “negrinha nojenta, ignorante e atrevida.”

Para a Corte, houve um ato de racismo neste chamamento, porque ofensivo não somente à vítima, mas à dignidade da pessoa humana, à humanidade em seu todo, asseverando que o racismo não se limita às condutas previstas pela Lei 7.716/1989, a um tipo penal nomeado “racismo”, e que e a interpretação da lei penal deve conferir proteção ampla às suas vítimas.

Do voto do relator, Ministro Fachim, reproduzimos as seguintes passagens:

“[…] a prática do crime de injúria racial traz em seu bojo o emprego de elementos associados ao que se define como raça, cor, etnia, religião ou origem para se ofender ou insultar alguém.

Em outras palavras, a conduta do agente pressupõe que a alusão a determinadas diferenças se presta ao ataque à honra ou à imagem alheia, à violação de direitos que, situados, em uma perspectiva civilista, no âmbito dos direitos da personalidade, decorrem diretamente do valor fundante de toda a ordem constitucional: a dignidade da pessoa humana” […]

“A injúria racial consuma os objetivos concretos da circulação de estereótipos e estigmas raciais ao alcançar destinatário específico, o indivíduo racializado, o que não seria possível sem seu pertencimento a um grupo social também demarcado pela raça. Aqui se afasta o argumento de que o racismo se dirige contra grupo social enquanto que a injúria afeta o indivíduo singularmente. A distinção é uma operação impossível, apenas se concebe um sujeito como vítima da injúria racial se ele se amoldar aos estereótipos e estigmas forjados contra o grupo ao qual pertence” […]

“Inegável que a injúria racial impõe, baseado na raça, tratamento diferenciado quanto ao igual respeito à dignidade dos indivíduos. O reconhecimento como conduta criminosa nada mais significa que a sua prática tornaria a discriminação sistemática, portanto, uma forma de realizar o racismo.

Tal agir significa, portanto, a exteriorização de uma concepção odiosa e antagônica a um dos mais fundamentais compromissos civilizatórios assumidos em diversos níveis normativos e institucionais por este país: a de que é possível subjugar, diminuir, menosprezar alguém em razão de seu fenótipo, de sua descendência, de sua etnia.

Trata-se de componente indissociável da conduta criminosa em exame, o que permite enquadrá-la tanto no conceito de discriminação racial previsto no diploma internacional quanto na definição de racismo já empregada pelo Supremo Tribunal Federal no voto condutor do julgamento do HC 82.424.

A atribuição de valor negativo ao indivíduo, em razão de sua raça, cria as condições ideológicas e culturais para a instituição e manutenção da subordinação, tão necessária para o bloqueio de acessos que edificam o racismo estrutural” […]

“Mostra-se insubsistente, desse modo, a alegação de que há uma distinção ontológica entre as condutas previstas na Lei 7.716/1989 e aquela constante do art. 140, § 3º, do CP. Em ambos os casos, há o emprego de elementos discriminatórios baseados naquilo que sóciopoliticamente constitui raça (não genético ou biologicamente), para a violação, o ataque, a supressão de direitos fundamentais do ofendido. Sendo assim, excluir o crime de injúria racial do âmbito do mandado constitucional de criminalização por meras considerações formalistas desprovidas de substância, por uma leitura geográfica apartada da busca da compreensão do sentido e do alcance do mandado constitucional de criminalização é restringir-lhe indevidamente a aplicabilidade, negando-lhe vigência” […].

Injúria racial é crime imprescritível.

No mesmo habeas corpus, vencida a tese de que a imprescritibilidade da injúria racial só pode ser implementada pelo Poder Legislativo, o Supremo, por consequência direta da imprescritibilidade constitucional da prática do racismo, [1]  reconheceu que o crime de injúria racial, como espécie do gênero “racismo”, é imprescritível, afastando o argumento do argumento do impetrante de extinção da punibilidade da ré, pela prescrição, pelo transcurso do prazo em metade decorrente da sua avançada idade.

Tratava-se, aliás, de habeas de habeas, pois, antes do pronunciamento do Supremo, outro habeas, com igual argumentação, havia sido impetrado e denegado pelo Superior Tribunal de Justiça, que também considerou o delito imprescritível.

Antissemitismo.

Esta evolução da proteção jurídica às vítimas de racismo, trouxe à lembrança atuação pessoal, como procurador de Justiça, cujo “parecer”[2] foi acolhido pelo Tribunal de Justiça do RS em emblemático processo criminal por antissemitismo em 1996, o “Caso Ellwanger”, que resultou, em 2003, no histórico julgado do STF sobre o conceito de raça e da possibilidade de crime de racismo por práticas de preconceito contra judeus, diante do argumento de que o incitamento contra o judaísmo não constitui crime de racismo, previsto imprescritível na Constituição Federal, porque a definição de judeu como raça sempre recebeu o veemente repúdio de toda a comunidade judaica.[3]


[1] Art. 5º, inc. XLII.

[2] Premiado pelo Movimento Estadual dos Direitos Humanos do RS, pela Organização Internacional de Direitos Humanos B’nai B’rith e pela Associação do Ministério Público do RGS. Em: https://jus.com.br/pareceres/16289/parecer-do-mp-rs-em-apelacao-de-sentenca-absolutoria-proferida-em-crime-de-racismo-contra-o-povo-judeu-lei-7716-89

[3] HC. 82424/RS, relatado pelo Ministro Moreira Alves.

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