Improbidade por atentado a princípios e violação de deveres na sua nova disciplina legal.

Carlos Otaviano Brenner de Moraes.

A configuração jurídica de ato de improbidade por atentado a princípios da Administração Pública e violação dos deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, como tal tipificado no art. 11 da Lei 8.429/1992, pressupõe a comprovação, na conduta funcional do agente público, do fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade (§ 1º do art. 11),[1] e a objetiva da prática de ilegalidade no exercício da função pública por inobservância a normas constitucionais, legais ou infralegais (§ 3º do art. 11)[2].

Sendo assim, o reconhecimento da tipicidade do ato de improbidade passa, necessariamente, por duas etapas.

A primeira, de apuração do elemento subjetivo da conduta do agente, do seu querer realizar a ilegalidade violadora de dever conectado a preceito reitor da Administração Pública.

Ou seja, o dolo, fenômeno cognitivo-volitivo da conduta ímproba, acrescido, no entanto, de uma finalidade, que não necessariamente deve ser atingida: de obtenção, para si ou terceira pessoa, física ou jurídica, de proveito ou benefício indevido.

A finalidade, embora também pertença ao campo psíquico-espiritual e ao mundo de representação do autor,[3] é uma representação especial, distinta e que psiquicamente antecede à  representação do querer. É o fim específico de obtenção de um proveito ou benefício indevido que move o agente a querer realizar a conduta capaz de concretizá-lo, determina a construção da vontade que movimenta a conduta à sua exteriorização no plano da realidade, à sua realização como ato que atenta contra os princípios e viola os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade.

O conjunto formado por estes dois elementos subjetivos da conduta dão vez ao chamado “dolo específico.” 

Desse modo, a primeira etapa de verificação da tipicidade do fato deve resultar na afirmação do “dolo específico”, contemporâneo, presente no momento do cometimento da conduta ímproba.

Considerando-se que o dolo é um dado psicológico, sabendo-se que a mente é de impossível acesso físico e que o dolo jamais pode ser presumido, sua investigação deve centrar-se nas circunstâncias externas concretizadas no fato, sopesadas à luz do razoável, do conhecimento, da experiência e do bom uso da inteligência. As mais das vezes o dolo é demonstrado com o auxílio do raciocínio, no dizer de Mittermayer,[4] já que na experiência forense o acusado raramente confessa a intencional prática do fato.  

A segunda etapa, ex vi do art. 11 e § 3º, demanda o reconhecimento de uma relação de contrariedade entre a conduta no exercício funcional e os comandos jurídicos emergentes de normas constitucionais, legais ou infralegais, pela realização da conduta proibida ou abstenção da devida, relação caracterizadora da “ilegalidade” elementar típica.

Note-se, ilegalidade “objetiva”, afirmada apenas pelo objetivo contraste entre a conduta realizada e a conduta normativamente estabelecida, sem a interferência de coeficientes subjetivos ou de particularidades da pessoa do autor, ilegalidade do “fato objetivo” realizado.

Vencidas as duas etapas e configurado o ato de improbidade, resta a questão da punibilidade do agente público, tendo em vista que o § 4º condiciona o sancionamento do ato ímprobo à constatação de “lesividade relevante” ao bem jurídico tutelado.[5]         

Lesividade relevante, não quer dizer e não se confunde com dano físico ou material ao bem jurídico, como fenômeno da realidade perceptível pelos sentidos. Nem é o considerável prejuízo patrimonial produzido, ou que a punição pelo ato de improbidade ceda diante de fato de “bagatela”. Prova disso, o § 4º do art. 11, ao exigir lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para o sancionamento do ato de improbidade, ressalva ser tal exigência independente de reconhecimento de danos ao erário e de enriquecimento ilícito do agente público, ou seja, da produção de “lesões materiais”. Lesividade, portanto, é de matiz jurídica e não material. Não é perceptível pelos sentidos, mas noção puramente normativa. A danosidade ao “valor probidade” é o “conteúdo da improbidade”, e o juízo de “desvalor jurídico do ato”, o seu “significado”, cujo grau de expressão enseja maior ou menor relevância lesiva.

Derradeira nota, a tipificação dos atos violadores de princípios da Administração Pública passou a ser taxativa. Somente se configuram como tais, as hipóteses previstas nos incisos do art. 11.


[1] “Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade.” 

[2] “O enquadramento de conduta funcional na categoria de que trata este artigo pressupõe a demonstração objetiva da prática de ilegalidade no exercício da função pública, com a indicação das normas constitucionais, legais ou infralegais violadas.”  

[3] Direito Penal. Parte Geral, tradução de Juarez Tavares. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1976, p. 34.

[4]Tratado da Prova em Matéria Criminal. Tradução de Herbert Wüntzel Heinrich. 3ª ed., 2ª tir. São Paulo: Bookseller, 1997, p. 181.

[5] Os atos de improbidade de que trata este artigo exigem lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para serem passíveis de sancionamento e independem do reconhecimento da produção de danos ao erário e de enriquecimento ilícito dos agentes públicos.”         

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