Estupro de vulnerável e importunação sexual. Desclassificação.

No âmbito do STJ, em 16 de novembro de 2021, foi acolhida a proposta de afetação 164 (originada da controvérsia 334 – passar a mão ou acariciar as partes íntimas das vítimas dentro de um ônibus ou metrô.  , REsp 1.957.637/MG, REsp 1.958.862/MG e REsp 1.954.997/SC. Relator: Min. Ribeiro Dantas), no rito dos arts. 1.036 e ss. do CPC/2015 e 256 e ss. do RISTJ (Tema Repetitivo 1121), para definição, pela Terceira Seção do Tribunal, sobre “a possibilidade ou não de se desclassificar o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP) para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP)”. Enquanto estiver para exame, fica suspensa a tramitação de processos com recursos especiais e/ou agravos em recursos especiais sobre a matéria, na origem e/ou no STJ.

Em pesquisa à base de jurisprudência da Corte, recuperaram-se, aproximadamente, 96 acórdãos e 1.093 decisões monocráticas proferidos por Ministros componentes das Quinta e Sexta Turmas, contendo essa controvérsia.

O recurso repetitivo serve para orientar as instâncias ordinárias em numerosos processos em tramitação e baliza as atividades futuras da sociedade, das partes processuais, dos advogados e dos magistrados. Evita decisões divergentes nos tribunais ordinários e o envio desnecessário de recursos especiais e/ou agravos em recursos especiais ao STJ. Os presidentes e vice-presidentes dos tribunais de origem, responsáveis pelo juízo de admissibilidade, podem negar seguimento a recursos especiais que tratem da mesma questão, ensejando o cabimento do agravo interno para o próprio tribunal, e não mais do agravo em recurso especial, conforme estabelecido no § 2º do art. 1.030 do CPC.[1]

Somos favoráveis à desclassificação objeto da controvérsia.

Primeiro, porque o estupro envolve um ato de poder, de subjugar a vítima a fazer ou a permitir que “com” ela se faça. Mesmo com violência presumida, requer a “participação” da vítima no ato. Da essência do delito que a conjunção carnal ou o ato libidinoso sejam praticados “com a vítima”.

Estupro não é quando o ato é praticado “contra” a vítima, irrelevante, venia concessa, a presunção de violência pela sua idade a 14 anos, inclusive pela discussão obre o tema, que ainda não se encerrou, prova disso a afetação acolhida pelo STJ.   Quando o ato libidinoso é “contra a vítima”, como, por exemplo, passar a mão ou acariciar as partes íntimas do ofendido dentro de um ônibus ou metrô, o crime que se configura é o de importunação sexual previsto no art. 215-A do CP. Enquanto todos os tipos de estupro exigem que o ato libidinoso seja praticado com a vítima, o tipo da importunação sexual prevê sanção àquele que o pratica contra alguém, que sequer tem a chance de se manifestar, que é mero objeto do ato do infrator, simples expectador, sem qualquer conduta positiva. Diz-se, em razão dessa sua característica, que a importunação sexual é uma “crime de surpresa”.  

Segundo, porque há uma enorme desproporção lesiva entre o ato libidinoso diverso da conjunção carnal e o estupro, que recomenda, por si só, menor apenamento ao agente. 

Tal como decidiu a 12ª Câmara de Direito Criminal do TJSP, em outubro de 2020, quando não há penetração, o ato libidinoso cometido contra menor de 14 anos não deve ser considerado estupro de vulnerável, mas importunação sexual.

De acordo com o Relator,  Des. João Morenghi, “ao aludir a outros atos libidinosos alternativamente à conjunção carnal, o legislador não visou qualquer conduta movida pela concupiscência, mas apenas aquelas equiparáveis ao sexo vaginal […] Não se está aqui a ignorar que o estupro de vulnerável, crime pelo qual foi denunciado e condenado em 1ª instância, é delito praticado mediante violência presumida, o que, a priori, poderia impossibilitar o reconhecimento do crime de importunação sexual. Todavia, repise-se, não houve na hipótese ora debatida a participação ativa da vítima, surpreendida que foi pela atos praticados sem sua anuência, não se podendo afirmar tenha sido ela forçada a nada. Assim, mostrando-se mais consentânea à realidade fática e também mais proporcional a apenação em relação aos atos praticados, desclassifica-se a conduta de para a prevista no artigo 215-A, do Código Penal.”  

Devemos considerar que muitas pessoas são condenadas por estupro de vulnerável quando se esfregam, passam a mão ou acariciam partes íntimas das vítimas vulneráveis, com penas altíssimas e desproporcionais aos fatos, como se estupros fossem, quando, na verdade, em que pesem censuráveis, porque lesivos ao bem jurídico tutelado pela norma penal, são atos libidinosos de pequena extensão, comparativamente ao estupro, de menor grau ofensivo à dignidade sexual quando cotejados com atos mais invasivos, como a penetração anal ou vaginal, por exemplo, não devendo receber igual apenamento.

A desclassificação para o tipo do art. 215-A atende aos princípios da proporcionalidade e da individualização da pena, punindo com rigor diferenciado os agentes que praticam atos de destacada gravidade. Mostra-se mais consentânea e justa à luz da natureza dos fatos, sem deixar de atender aos imperativos de necessidade e suficiência à prevenção e repressão ao crime. Bem disse o Ministro Barroso em seu voto-vista no HC 134.591/SP, pela admissibilidade da desclassificação da conduta do art. 217-A para o art. 215-A, que a doutrina sempre criticou a ausência de uma precisa diferenciação na lei das diversas modalidades de ato libidinoso, e por isso mesmo o julgador deve sempre procurar distinguir aquelas condutas mais graves e invasivas daquelas condutas menos reprováveis, preservando assim a razoabilidade e a proporcionalidade da resposta penal, distinção de condutas mais ou menos invasivas que o art. 217-A não faz.


[1] Despacho do Ministro Presidente da Comissão Gestora de Precedentes, no Resp. 1954997/SC.

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