Homicídio doloso, pronúncia e qualificadoras.
CARLOS OTAVIANO BRENNER DE MORAES.
Como regra, nos crimes dolosos contra a vida, cabe ao Tribunal do Júri, no exercício da sua competência constitucional, também decidir sobre a pertinência ou não de circunstância qualificadora descrita na denúncia e acolhida pela sentença de pronúncia.
Para que a matéria não lhe seja subtraída dessa sua competência natural, a sentença pronúncia, sem maiores investidas no exame da prova, inclusive para não influenciar a convicção dos julgadores populares, deve apenas verificar a admissibilidade probatória e jurídica da circunstância qualificadora proposta pelo Ministério Público e encaminhá-la para deliberação ao júri.
Encerra a pronúncia simples juízo de admissibilidade da acusação, satisfazendo-se, tão somente, pelo exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria. Não demanda o mesmo juízo de certeza necessário à sentença condenatória.
Nesta fase do processo penal, vigora o princípio in dubio pro societate.[1] Por exemplo, resolve-se pro societate dúvida se o homicídio foi ou não praticado em contexto de violência doméstica e familiar, ou por menosprezo ou discriminação à mulher. Sua solução não é da alçada do juiz.[2]
Isto não significa que toda e qualquer circunstância qualificadora posta pela denúncia deva ser incorporada pela pronúncia e consubstanciar a acusação levada ao júri. A regra do in dubio pro societate não tem incidência quando o fato narrado na denúncia manifestamente não corresponde ao “sentido jurídico” da circunstâncias qualificadora.[3]
Exemplo pode ser dado com a imputação de homicídio qualificado pelo uso de recurso que tenha dificultado ou impedido a defesa, previsto no inc. IV do § 2º do art. 121 do CP, baseada apenas na circunstância de superioridade de forças ou de armas, ou por não ter a vítima forças para resistir, estar desarmada, ser paralítica, cega ou portadora de deficiência incapacitante para exercer a fuga.
O “outro recurso,” previsto ao final do tipo qualificador, necessariamente deve estar na linha ontológica em que se encontra a traição, a emboscada e a dissimulação, modos de execução homicida especificados e referências únicas à interpretação analógica admitida, que, por natureza, são modos de execução homicida insidiosos, sub-reptícios, possuindo em comum a perfídia, exatamente para que a vítima não perceba o ataque e não se prepare para a defesa da sua vida.
A incapacidade física ou a deficiência do ofendido e o aproveitamento disso pelo agente, bem como a superioridade de forças e de armas, não são modos de execução do crime. Se o uso de revólver ou outra arma contra vítima desarmada por si só qualificasse, raramente o homicídio deixaria de ser qualificado.
Tais “circunstâncias do crime” não são destituídas de relevo no processo, mas o campo de incidência adequado para o sopeso penal é o da aplicação da pena (art. 59 do CP), devendo a sentença de pronúncia expungir a qualificadora quando baseada em tais circunstâncias, sem qualquer violação ao princípio da soberania do Júri.
Quanto ao ciúme como motivo fútil ou torpe,[4] não automaticamente configura qualificadora.
O STJ deu provimento ao RE 1.743.740-MG, interposto pelo MPMG, contra decisão do TJMG, que, dando parcial provimento ao recurso em sentido estrito defensivo, decotou a qualificadora do motivo fútil da pronúncia, pelo entendimento de que “a ação decorrente de ciúme, embora seja reprovável, não pode ser compreendida como pequena, banal ou desproporcional. Assim, não se pode concluir que o ciúme – sentimento que naturalmente permeia as emoções humanas – seja considerado como fútil”.
Nas razões recursais, sustentou o MP que a pronúncia constitui decisão de natureza interlocutória mista não terminativa, fundada em suspeita e não em juízo de certeza, cuja dúvida deve militar em favor da sociedade. Neste sentido, o fato de o acusado ter agido impelido por ciúme não autorizaria, automaticamente, o afastamento da qualificadora do motivo fútil, porquanto a valoração das provas quanto à incidência, ou não, da referida circunstância, estaria afeta ao Conselho de Sentença.
Ao prover recurso especial monocraticamente, o STJ, pela decisão do ministro relator Antônio Saldanha Palheiro, reiterou o entendimento consolidado daquela Corte no sentido de que a exclusão de qualificadoras constantes na pronúncia somente pode ocorrer quando manifestamente improcedente, sob pena de usurpação da competência do Tribunal do Júri, juiz natural para julgar os crimes dolosos contra a vida, e, dessa forma, embora os ciúmes não caracterizem, por si só, a motivação fútil, tem-se que cabe ao Conselho de Sentença avaliar se o contexto trazido nos autos autoriza a qualificação dos ciúmes como motivo fútil[5].
Ainda em relação ao ciúme, mas na perspectiva de motivação torpe, a jurisprudência superior é nesta mesma orientação. Se houver segmento de prova de ter agido o réu por vingança, o debate e a decisão se a vindicta constitui ou não uma motivação torpe é do júri e não do juiz instrutor do processo. Exclusivamente os jurados, conhecendo os fatos do processo, estão habilitados a emitir juízo sobre a sua natureza torpe ou não. Podem, inclusive, desconhecer a própria vingança.
Igual pode ocorrer na imputação da vingança como motivação torpe do homicídio, se incontroverso tenha sido o homicídio motivado por abuso sexual da vítima contra o agente, no passado, por exemplo.[6]
Consagrado entendimento doutrinário e jurisprudencial é o de que a vingança qualificante deve ser eivada de torpeza.[7] O móvel de vingar deve ser torpe, ignóbil, abjeto na origem, característica nem sempre presente em toda e qualquer vindicta, razão pela qual a vingança, por si só, não caracteriza automaticamente a torpeza.[8] Embora reprovável, não se pode acoimar de moralmente repugnante o sentimento de quem matou a vítima para vingar a morte de seu pai, que teve o cadáver jogado aos porcos, quando o réu era criança. Tal circunstância do passado afasta, de plano, a torpeza do motivo, permitindo a exclusão da qualificadora do homicídio.[9] A vingança, como motivo, é somente aquela que mais vivamente ofende a moralidade média, o senso ético social comum.
Também a observar-se, a qualificadora do homicídio fundada exclusivamente em depoimento indireto viola o art. 155 do CPP, aplicável aos veredicto proferidos pelo Tribunal do Júri. No HC 560.552/RS, a Quinta Turma do STJ decidiu que o art. 155 do CPP incide também sobre a pronúncia, pois, caso contrário, haveria a exigência de um standard probatório mais rígido para a admissão da acusação do que aquele aplicável a uma condenação definitiva. Não há produção de prova, mas somente coleta de elementos informativos, durante o inquérito policial. Prova é aquela produzida no processo judicial, sob o crivo do contraditório, e assim capaz de oferecer maior segurança na reconstrução histórica dos fatos. “Consoante o entendimento firmado no julgamento do AREsp 1.803.562/CE, embora os jurados não precisem motivar suas decisões, os Tribunais locais – quando confrontados com apelações defensivas – precisam fazê-lo, indicando se existem provas capazes de demonstrar cada elemento essencial do crime. Se o Tribunal não identificar nenhuma prova judicializada sobre determinado elemento essencial do crime, mas somente indícios oriundos do inquérito policial, há duas situações possíveis: ou o aresto é omisso, por deixar de analisar uma prova relevante, ou tal prova realmente não existe, o que viola o art. 155 do CPP.”[10]
A pronúncia não está autorizada a deixar de fundamentar, ou a fundamentar com deficiência.
O juiz é obrigado, sob pena de nulidade, a dar os motivos de seu convencimento, ex vi do art. 93, IX, da CF. Deve expor o raciocínio desenvolvido para chegar à conclusão, possibilitando que dele tomem conhecimento as partes e o Tribunal em apreciação de eventual recurso, não somente sobre o tipo básico, mas também sobre as qualificadoras que entender admissíveis. “Ainda que se trate de um mero juízo de admissibilidade, no qual é vedado proceder-se a um exame exauriente da prova e em que prevalece o princípio in dubio pro societate, revela-se nula a decisão de pronúncia que deixa de motivar concretamente a admissibilidade da acusação.”[11]
Em termos sóbrios e comedidos para não influenciar a decisão dos jurados, mas sem fugir da fundamentação, deve dar as razões de fato e de direito que o convenceram a decidir pela admissibilidade da qualificadora do homicídio:
“Conquanto o § 1º do artigo 413 do Código de Processo Penal preveja que a fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena, não há dúvidas de que a decisão que submete o acusado a julgamento pelo Tribunal do Júri deve ser motivada, inclusive no que se refere às qualificadoras do delito, notadamente diante do disposto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, que impõe a fundamentação de todas as decisões judiciais. Isto porque, a falta de fundamentação com relação às circunstâncias que qualificam o delito de homicídio pode ser tratada como causa de perplexidade no exercício do direito de defesa do acusado, já que impede o conhecimento das razões pelas quais será levado a julgamento pelo Tribunal do Júri por um delito objetivamente mais grave. As circunstâncias fáticas que tornam mais grave o crime de homicídio – porque apenadas de forma mais severa – fazem parte do próprio tipo descrito abstratamente em lei, razão pela qual devem igualmente ser fundamentadas na decisão de admissibilidade da exordial, para que não se tenha uma acusação temerária submetida à apreciação do Tribunal do Júri, cuja característica mais marcante é a sua composição por juízes leigos. Ademais, a falta de fundamentação das qualificadoras impede, até mesmo, o exercício do duplo grau de jurisdição condizente com o Estado Democrático de Direito, já que obsta eventual alegação de improcedência manifesta das circunstâncias do delito atribuídas ao agente, pois desconhecidas as razões pelas quais foram julgadas admissíveis.”[12]
A fundamentação, portanto, tem implicação substancial e não meramente formal, inclusive em sede de sentença de pronúncia e também no relativo às circunstâncias qualificadoras.
[1] Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do RGS. Porto Alegre, vol. 149, Tomo I, p. 154-150. Do STJ: Firme o entendimento desta Corte no sentido de prestigiar as qualificadoras dispostas na denúncia e albergadas no decreto de pronúncia, que não devem ser excluídas pelo Tribunal revisor, salvo em caráter raro e excepcional – quando manifestamente improcedentes. Havendo dúvida pelo juiz singular sobre a qualificadora ofertada na denúncia, cabe ao Tribunal do Júri, que é o juiz natural dos crimes contra a vida (CF, art. 5º, XXXVIII), verificar a sua incidência. Ordem denegada (HC nº 31.444).
[2] HC 541237/DF, Quinta Turma, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, julgamento em 15/12/2020 e DJe 18/12/2020.
[3] STJ, REsp 1706918/RS, Quinta Turma, relator Ministro Jorge Mussi, julgamento em 03/05/2018 e DJe 09/05/2018.
[4] STJ, AgRg no AREsp 1.128.138/MG, Quinta Turma, Relator Ministro Ribeiro Dantas, julgado em 21/09/2017, DJe 27/09/2017. AgRg no AREsp 1134833/SP, Quinta Turma, relator Ministro Joel Ilan Paciornik julgamento em 12/12/2017 e DJe 01/02/2018.
[5] Fonte: https://www.mpmg.mp.br/areas-de-atuacao
[6] STJ, HC n. 126.884. Quinta Turma, relator Ministro Felix Fischer, julgamento em 15/09/2009 e DJe de 16/11/2009; STJ, REsp 1637001, Sexta Turma, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgamento em 29/11/2017 e DJe 19/12/2017.
[7] A vingança pode constituir o homicídio torpe, mas é necessário que esteja eivada de torpeza, que cause repulsa segundo os valores éticos correntes (MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N.. Código Penal interpretado. 9 ed. São Paulo: Atlas S.A., 2015, p. 772).
[8] MASSON, Cleber. Código Penal comentado. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016, p. 617)..
[9] STJ, REsp 1637001, Sexta Turma, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgamento em 29/11/2017 e DJe 19/12/2017
[10] HC 703.912-RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 23/11/2021.
[11] STJ, HC 133.667/RJ, Quinta Turma, relator Ministro Felix Fischer, DJe 8/3/10.
[12] STJ, HC 287807/PE, Quinta Turma, relator Ministro Jorge Mussi, julgamento em : 10/06/2014 e DJe de 18/06/2014.