Importação de sementes de maconha e crime de tráfico internacional de drogas – Defesa em processo criminal

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DA PRIMEIRA VARA CRIMINAL DA JUSTIÇA FEDERAL DA COMARCA DE XXXXXXX

Processo nº

I – DA IMPUTAÇÃO.

Trata-se de denúncia de tráfico internacional de entorpecentes (art. 33, § 1º, inc. I, da Lei nº 11.343/06), pelo fato de a Acusada Fulana de Tal haver importado, da Holanda, sem autorização e/ou em desacordo com determinação legal, insumo destinado à “preparação” de droga, consistente em “dezesseis sementes de maconha”, apreendidas em 6 de fevereiro de 2015, na Alfândega da Receita Federal dessa cidade.

II – DA PRELIMINAR DE INOCÊNCIA.

Nesta sua primeira manifestação perante o juízo processante, tendo em vista que os atos instrutórios se realizaram em deprecado, admite a autoria da importação das sementes, mas declara-se inocente quanto ao crime que lhe é atribuído, porque não quis cometê-lo.

Sem que isto implique numa alegação de desconhecimento da lei penal, que se sabe inescusável, a verdade é que desconhecia, por completo, a contrariedade da conduta de importação das sementes à ordem jurídica. Desconhecia essa “relação de ilicitude”. Pensou pudesse fazê-lo sem oposição ao sistema normativo penal.

Hoje, em virtude do inquérito e da gravidade de um processo por “tráfico internacional de drogas”, com todas as angústias decorrentes a quem jamais esteve em situação similar, percebe que lhe faltou cautela. Deveria ter buscado informações antes de efetuar a compra. Só que não lhe passou pela cabeça na época, como representação mental, a conveniência dessa busca nem a eventual vedação legal para a importação das sementes de maconha em razão da “finalidade de uso visada”.

Prova de sua boa-fé está na circunstância de haver adquirido as sementes em nome próprio, pagando com seu cartão e declinando, para entrega, seu endereço residencial verdadeiro, sem subterfúgios.

Não se ocultou nem tentou ocultar-se em absolutamente nada.

Ao importar, agiu com transparência, o que certamente não faria se tivesse noção do caráter criminoso do fato.

Com a mesma transparência, sem rodeios, confirmou a autoria da compra à autoridade policial, quando surpreendida pela instauração do inquérito (interrogatório de fls), e assim também em juízo, no interrogatório, tendo explicado, nessas duas oportunidades, as razões que a levaram à prática de tal ato.

Segundo declarou, leu na internet sobre as propriedades terapêuticas das sementes de maconha para emagrecimento e anemia, havendo farto material neste sentido em vários sítios, a exemplo do qual se valeu para motivar a importação, cuja cópia ofereceu à autoridade policial, juntada aos autos do inquérito.

Estimulada pela publicação, quis importar as sementes especificamente para utilizá-las na “forma de chá visando seus fins terapêuticos”, não para o posterior plantio e consumo de maconha como substância entorpecente capaz de causar dependência física ou psíquica.

Não é e nunca foi usuária de maconha ou qualquer outra droga ilícita, inexistindo episódio que a envolva em acontecimento semelhante ou sequer parecido. Foi amplamente abonada pelos testemunhos colhidos em audiência e pela carta em anexo, cuja juntada requer, prestados por pessoas que a conhecem com intimidade há vários anos, em suas atividades e relacionamentos profissionais, familiares e sociais.

No processo penal, a palavra do acusado reveste-se das características de “versão”, como expressão a respeito da verdade do fato “apta” e “admissível” para embasar veredicto absolutório, sempre que se apresente com “coerência interna”, seja “assimilável” pelo ordinário da vida e se faça respaldada, quando possível, em “elemento objetivo de convicção”.

Pois, as explicações dadas pela Acusada no inquérito e no processo sobre o “motivo determinante”“finalidade” e “circunstâncias” da ação de importação, “assimiláveis” como hipótese real de um fato da vida, “não discrepam entre si” e são “respaldadas” em elementos objetivos de reforço persuasivo, erigindo-se em “versão”.

Nada há no processo que lhes contraponha. Nenhuma testemunha foi arrolada pela denúncia que eventualmente pudesse contradizê-las quanto ao aspecto subjetivo motivador do fato, não podendo ser tidas, simplistamente, como expedientes artificiosos para causar dúvida no espírito do julgador só pela condição de ré de quem promanam, como se desta condição processual decorresse regra, sem exceção, de que toda e qualquer explicação do acusado deva ser vista como congenitamente suspeita e por isso destituída de credibilidade.

Conhecendo as propriedades terapêuticas das sementes para emagrecimento e anemia, através da internet (página do sítio impressa e juntada ao inquérito – primeiro elemento objetivo de reforço), interessou-se em adquiri-las e testá-las, como habitualmente o fazem milhares de mulheres na rede mundial de computadores quando despertadas por anúncios de novas e formidáveis substâncias emagrecedoras (fato sabido e corriqueiro – assimilável pela experiência ou ordinário da vida).

Embora se tratassem de sementes de maconha, é verdade, igualmente verdadeiro também o é que as sementes não seriam para germinar a planta e posterior utilização da maconha como droga em si, razão pela qual a importação foi feita pela Acusada em “nome próprio”, com o “próprio cartão” e para endereçamento ao “próprio núcleo residencial” (segundo elemento objetivo de reforço).

Idoneidade, seriedade e coerência interna, requisitos para que se possa tomar a alegação como versão, são indiscutíveis neste caso e devem balizar o deslinde judicial.

A Acusada, em conformidade com o que consta dos autos, é pessoa absolutamente idônea, exerce atividade profissional conhecida e lícita que lhe dá sustento, foi sincera e crível em suas declarações nas vezes em que lhe foi dada oportunidade para falar sobre o fato, as quais encontram suficiente respaldo persuasivo em dados objetivos também recolhidos pelo inquérito policial e o processo judicial.

III – DOS ARGUMENTOS DEFENSIVOS.

No exame técnico-jurídico da causa que se impõe como tarefa defensiva, com o fito absolutório, por “atipicidade” do fato denunciado (art. 386, inc. III, do Código de Processo Penal), respeitosamente submete à apreciação de Vossa Excelência os seguintes argumentos:

a) FALTA DE DOLO E ERRO DE TIPO.

O dolo, como consciência e vontade dirigidas à realização global do fato descrito no tipo penal incriminador, projeta-se sobre todas as elementares e circunstâncias típicas. Na sempre prestigiada lição de DAMÁSIO DE JESUS, “O dolo deve abranger os elementos da figura típica. Assim, para que se possa dizer que o sujeito agiu dolosamente, é necessário que seu elemento subjetivo tenha-se estendido às elementares e circunstâncias do delito (in Direito Penal, vol. I, pág. 286 – grifamos).

No tipo equiparado do inc. I, § 1º, do art. 33, no qual a Acusada está incursa, o dolo deve abranger o conhecimento, pelo autor, “que se trata de droga e que age sem autorização legal ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” (PAULO QUEIROZ, in Notas Sobre a Lei de Drogas – grifamos).

Assim, à caracterização desta infração penal não é suficiente a mera realização objetiva da ação típica de importar. Devido à presença daqueles elementos normativos referentes à ilicitude da ação, à configuração típica, e, portanto, à tipicidade, é essencial que o agente “saiba” que se encontra frente a um bem que a ordem jurídica tutela, pois somente desse modo poderá motivar a conduta na conformidade do sentido protetivo da norma. Sem esta possibilidade de motivação, vinda do “conhecimento da antijuridicidade” e da disposição do agente em mesmo assim realizar a conduta típica, a norma não incide. O conhecimento da ilicitude funciona como núcleo típico.

Faltando, porque tenha o agente razões para supor que possa fazê-lo, a partir das informações e oferta do produto num sítio de vendas da internet, por exemplo, seu erro sobre a ilicitude tipificada (“sem autorização legal ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”) importará na atipicidade do fato, por erro de tipo, seja evitável ou inevitável, consoante dispõe o art. 20, do Código Penal.

O erro de tipo sempre exclui o dolo devido à falta de conhecimento e vontade do agente sobre algum dos elementos típicos constitutivos da figura penal incriminada. No caso, consciência e vontade em importar o insumo à produção da droga “sabendo fazê-lo” sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Relevante observar que o erro sobre a ilicitude do fato configura, em regra, erro de proibição, cujo efeito se dá no campo da culpabilidade e não da tipicidade (art. 21 do CP).

Todavia, quando “o preceito primário de um tipo penal inclui na descrição da conduta criminosa elementos normativos de índole jurídica, ou mesmo palavras ou expressões atinentes à ilicitude” […] “o erro sobre a ilicitude do fato caracteriza erro de tipo, com todos os seus efeitos, e não erro de proibição, porque a ilicitude funciona como elemento do tipo penal. O erro, portanto, incide sobre os elementos do tipo” (por todos, CLEBER MASSON, in Código Penal Comentado, pág. 168 – grifos constantes do texto).

Com efeito, não tendo sido a ação da Acusada de importação das sementes movida com a consciência e vontade em realizá-la “sem autorização e/ou desacordo com determinação legal ou regulamentar”, elementos normativos típicos referentes à ilicitude que necessariamente precisariam ser encampados pelo dolo, o fato é “atípico”, por “ausência de dolo” decorrente do “erro de tipo”. Aliás, nas circunstâncias concretizadas neste processo, “absolutamente atípico e impunível”, em face da inexistência de previsão legal da modalidade culposa do delito de tráfico internacional de drogas.

Corroborando o erro, se tivesse agido com consciência e vontade de “ilegalmente” importar as sementes, sabendo-a, por conseguinte, “ação criminosa”, de presumir-se, pelo ordinário da experiência forense, que a Acusada não o teria feito no próprio nome e no verdadeiro endereço residencial. Sua conduta é “atípica” frente ao tipo no qual foi classificada pela denúncia.

b) SEMENTE DA CANNABIS SATIVA NÃO É MATÉRIA-PRIMA OU INSUMO DESTINADO À PREPARAÇÃO DA MACONHA. ATIPICIDADE.

Ainda que se possa eventualmente discordar, é forçoso reconhecer-se a existência de uma série de precedentes federais (TRF3ª, HC nº 25590; ACR nº 00100130320124036181; RSE nº 000873244120144036181; RSE nº 00013509420144036181; RSE nº 00118254620134036181; ACR nº 00017371220144036181; RSE nº 001554924201440036181; TRF1ª, RSE nº 00084043320144013800) e estaduais (TJSP, RJTJSP 84/384; 87/387; 88/400; 98/489; TJSC, RT 498/350), secundados por respeitável segmento doutrinário especializado no assunto (PAULO QUEIROZ, in Adquirir/importar semente de maconha é crime? – MARCO ANTÔNIO FERREIRA LIMA, in Crime de tráfico, uso ou contrabando?), a constituir-se numa “razoável interpretação” da legislação penal, no sentido de que a semente da planta Cannabis sativa “não se presta à preparação da maconha”, pois, em si, além de “não possuir o THC em sua composição”, a semente não tem qualidades químicas que, mediante adição, mistura, preparação ou transformação química, possam resultar em drogas ilícitas.

“Preparar” e “produzir” são dois verbos típicos distintos, que devem ser corretamente compreendidos em seus específicos significados, notadamente em sede e aos efeitos do direito penal incriminador. “Preparar” tem o sentido de “aprontar” ou de compor algo, para que possa ser utilizado, a partir de elementos ou ingredientes, enquanto “produzir” tem o sentido de fazer nascer de si, de “causar ou fabricar” algo.

E a semente “não prepara” a maconha. Pode ser matéria-prima ou insumo à “produção” da droga. Porém, do tipo penal apontado pela denúncia, o inc. I, § 1º, art. 33, tal hipótese de “ação de preparação” não consta como conduta punível, sabendo-se vedada, por força do princípio da reserva legal (art. 1º do CP), a equiparação da “ação de preparação” à “ação de produção”“É vedado, em matéria penal, o emprego da analogia in malam partem e de interpretação com efeitos extensivos em prejuízo da liberdade” (CELSO DELMANTO, in Código Penal Comentado, pág. 52). Se fosse intenção do legislador equiparar tais condutas, teria ou deveria ter feito referência expressa à “produção” e não apenas à preparação de drogas no referido inciso. Consequentemente, a semente, como fruto da maconha, não é e nem deve ser tida pelo sistema judicial como matéria-prima ou insumo destinado à “preparação” desta droga, e sim à “produção” da planta Cannabis sativa, sob pena de violação do “princípio da legalidade”.  Inclusive, nem do inc. II, do § 1º do mesmo art. 33, consta a conduta de “importar” matéria-prima para a “preparação” de drogas.

Assim, respeitado o princípio da correlação em relação ao inc. I, e, pela falta de previsão em relação ao inc. II, do mesmo parágrafo e artigo legal, num ambiente de plena vigência do Estado Democrático de Direito, deve ser reconhecida a “atipicidade” do fato denunciado e decretada a absolvição da Acusada.

c) O CRIME DE TRÁFICO PRESSUPÕE QUE A SUBSTÂNCIA, POR SI SÓ, TENHA POTENCIALIDADE PARA A PRODUÇÃO DE EFEITOS ENTORPECENTES E/OU PSICOTRÓPICOS E POSSA CAUSAR DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA.

E isto não ocorre com as sementes de maconha, porque não possuem o THC, que é a substância psicoativa. Acaso encontrado o THC, é porque houve contaminação externa da semente, ou do óleo da semente, por outras partes da planta, no momento da separação das sementes, propágulos vegetais de morfologia de frutos. Exatamente em virtude de não possuírem o THC, como bem observado pelo Procurador de Justiça de São Paulo MARCO ANTÔNIO FERREIRA LIMA, no artigo acima intitulado, “Se uma pessoa fosse surpreendida trazendo com ela sementes de maconha não estaria em tese cometendo crime algum, uma vez que essas não são, sob o aspecto técnico, consideradas como droga nos termos da Lei”.

Se as sementes de maconha não possuem características ou descrições atestadas cientificamente ou por norma regulamentar para serem classificadas como drogas, há no mínimo dúvida se elas podem ser efetivamente tratadas como “matéria-prima” ou “insumo” com condições e qualidades necessárias para resultarem em substâncias entorpecentes, justificando-se, assim, para o reconhecimento judicial da atipicidade do fato, a incidência do consagrado in dubio pro reo.

Por outro lado, mas de igual importância na análise jurídica do fato denunciado, as sementes de maconha não necessariamente se transformam em plantas, não havendo, pois, como afirmar-se, com a certeza exigível em sede do processo penal com efeitos condenatórios, que a importação dessas sementes constitua ato sequer preparatório de droga ilícita.

Estudo realizado por peritos criminais federais em conjunto com alunos do Programa de Pós-Graduação da UFRGS, concluiu pela “baixíssima probabilidade” de a semente germinar e vir a gerar as flores.

Utilizadas “73 amostras” de sementes maconha, que foram  tratadas pelos pesquisadores em condições semelhantes de germinação, fertilização e estufa adequadas para a operação, tal como fazem os cultivadores em geral, após 12 semanas, período de tempo reputado suficiente para a colheita das flores, restaram apenas “5 amostras” aptas à produção da droga, ou seja, tão somente o equivalente a “6,85%” do total das sementes plantadas, sem contar que tal percentual pode ser ainda menor, visto que são apenas as plantas fêmeas que produzem as flores, parte utilizada para o consumo na forma fumada ou cocção para extração do óleo medicinal.

O mesmo estudo também demonstrou que o Estado, até o atual estágio do conhecimento científico, é “incapaz de categoricamente afirmar que as sementes importadas, distribuídas ou comercializadas estão aptas a produzir droga”. O que se pode afirmar, disseram os pesquisadores, com certeza científica, é que há aproximadamente “96,58%” de chances de as sementes apreendidas no Brasil, advindas de remessas postais estrangeiras, “não produzirem a droga”, mesmo que presente a planta.

A importância desse estudo, como pesquisa científica de responsabilidade de conceituada instituição de ensino, ainda pouco difundido no âmbito jurídico nacional, está em trazer à luz valiosos dados que confrontam o senso comum reproduzido por denúncias, sentenças e acórdãos em juízos e tribunais do país, tal como ocorrido na espécie.

A propósito desta relevante questão, no Parecer nº 795/2017, lançado no ARESP 107512-STJ, em anexo, o Ministério Público Federal assim se posicionou:

“Na espécie, recorre-se novamente ao estudo empírico realizado pelos pesquisadores e peritos policiais Rafael S. Ortiz e Monique dos Reis, publicado na Revista Perícia Federal em maio de 2015, que revelou ser de apenas 3,42% a probabilidade de as sementes importadas se tornarem plantas adultas aptas a gerar flores destinadas ao consumo (fêmea) em uma produção indoor.

Levando-se a termos quantitativos, pode-se afirmar com certa acuidade que, das 15 (quinze) sementes importadas pelo investigado, apenas 0,51% (meio por cento) detém a potencialidade de gerar a planta fêmea adulta, com flores, ou seja, apenas na metade de uma delas há a potencialidade para produzir a droga para consumo pessoal.         

Baseado nesses dados técnicos pode-se afirmar, no caso concreto, que a quantidade das sementes importadas, as condições pessoais do autor do fato e o grau de ofensividade da conduta praticada revelam a inexpressividade da lesão jurídica, ausência de periculosidade da ação e o ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento, razões que comportam, excepcionalmente, a aplicação do princípio da insignificância à hipótese”.

Não possuindo as sementes, “por si só”, devido à falta do THC, potencialidade para a produção de efeitos entorpecentes e/ou psicotrópicos para causar dependência física ou psíquica, além de ser “baixíssima” a probabilidade de uma semente germinar e vir a gerar as flores, no caso foram dezesseis inexpressivas sementes, o fato denunciado deve ser reconhecido como “atípico”.

d) A IMPORTAÇÃO DA SEMENTE DE MACONHA, ATÉ QUE, AO MENOS, SE INICIE A EXECUÇÃO DAS CONDUTAS TÍPICAS, NÃO CONFIGURA O CRIME DO ART. 33 DA LEI DE DROGAS, NOS TERMOS DO ART. 14, II, DO CP.

A importação da semente é “ato pretérito” à “produção” da maconha, e, por conseguinte, fato “preparatório” e “atípico” à luz do que dispõe o art. 14, inc. II, do Código Penal:

“IMPORTAÇÃO DE SEMENTES DE CANNABIS SATIVA (MACONHA), POR INTERMÉDIO DE SÍTIO NA REDE MUNDIAL DE COMPUTADORES (INTERNET). REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ATO PREPARATÓRIO.

I – A conduta atribuída ao denunciado foi, de fato, mero ato preparatório não punível, a teor do que dispõe o art. 31 do CP. Tampouco há que se falar em tentativa (art. 14, II, do CP), uma vez que não se iniciou a fase executória, pressuposto para sua ocorrência.

II – Na hipótese, não há como se concluir pela traficância internacional atribuída ao denunciado. A rigor, verifica-se a tentativa de importação de sementes de substância proscrita, que, apesar da confissão do acusado, em fase policial, apenas se presume que seriam plantadas para posterior consumo ou revenda do produto do cultivo no mercado interno.

III – Presunção desacompanhada de fato concreto torna duvidosa a tipicidade da conduta e, por conseguinte, incabível o recebimento da denúncia. IV – Conduta que não se abona; contudo, é atípica, porque meramente preparatória. V – Recurso desprovido” (TRF1, 3ª Turma – grifamos).

Somente quando o agente inicia a semeadura ou o cultivo da planta de maconha, na produção então efetiva da droga com a utilização das sementes que importou, é que há o “começo de execução da ação típica” e a configuração do crime equiparado ao tráfico de entorpecentes (§ 1º, inc.  II, do art. 33, da Lei de Drogas).

Desse modo, frente ao tipo denunciado, a “importação de sementes de maconha é atípica”.  Poderia ser subsumível no art. 28, § 1º, na forma tentada (CP, art. 14, II), mas, mesmo nesta hipótese, seria fato “impunível”, pois as penas não reclusivas cominadas no art. 28, da lei especial, não comportam combinação com o art. 14, § único, do Código Penal.

e) TRATANDO-SE DE PEQUENA QUANTIDADE DE SEMENTES E INEXISTINDO EXPRESSA PREVISÃO ENTRE AS CONDUTAS DO ART. 28, A IMPORTAÇÃO DE PEQUENA QUANTIDADE DE MATÉRIA-PRIMA À PREPARAÇÃO DA DROGA PARA CONSUMO PESSOAL, É FATO ATÍPICO.

Ad argumentandum, uma vez que a Acusada, como disse no inquérito policial e na instrução criminal, não importou as dezesseis sementes de maconha para utilizá-las de matéria-prima ou insumo à preparação da droga e posterior consumo pessoal como psicotrópico ou entorpecente capaz de causar dependência física ou psíquica, relevante observar que, “mesmo que se repute a semente de maconha matéria-prima ou insumo desta droga”, na mais recente interpretação judicial do tema “importação de sementes de maconha”, da lavra da colenda Sexta Turma do egrégio Superior Tribunal de Justiça:

(a) se a Lei de Drogas explicitamente “diferencia traficante de usuário”, considerando, dentre outras circunstâncias, a “quantidade da substância apreendida”, para, mantendo a criminalização, afastar as penas reclusivas; e

(b) se esta mesma Lei faz expressa previsão acerca do cultivo da planta destinada à “pequena quantidade de entorpecente”, não havendo similar previsão normativa quanto à “importação de pequena quantidade” de matéria-prima ou insumo destinado à preparação da droga para consumo pessoal, há de reconhecer-se, neste particular, a “atipicidade” do fato importação de sementes:

“Inexistindo expressa previsão normativa que criminaliza, entre as condutas do art. 28 da Lei de Drogas, a importação de pequena quantidade de matéria-prima ou insumo destinado à preparação da droga para consumo pessoal (poucas sementes de maconha), forçoso reconhecer a atipicidade do fato.

Importante ressaltar, nesse passo, que não há razoabilidade ou proporcionalidade qualquer em conferir tratamento mais rigoroso ao que importa poucas sementes de maconha, cominando-lhe penas que em tese poderiam ultrapassar 15 anos de reclusão por tráfico internacional de entorpecentes, enquanto aquele que já cultivou tais poucas sementes estaria sujeito apenas a medidas restritivas, nos termos do § 1º do art. 28 da Lei nº 11.343/06.

Há de ser considerar, ainda, além da pequena quantidade de sementes apreendidas, outras circunstâncias que reconhecidamente dificultam a efetiva obtenção da planta por meio do cultivo, como o seu baixíssimo poder de germinação e de vir a nascer uma planta-fêmea capaz de gerar flores com THC em quantidade suficiente, como bem lembrou o ilustre representante do MPF, citando pesquisa científica acerca do tema em seu parecer” (voto da Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, no Recurso Especial nº 1.675.709-SP, de 22/08/17 – grifamos).

f) ORIENTAÇÕES DO STF, ANVISA E MPF.

Além do exposto e com o mesmo fito absolutório, no exame judicial da causa devem ser consideradas as seguintes circunstâncias:

a) A “descriminalização” da maconha é tema pendente de deliberação pelo STF no julgamento do RE 635.659/SP, havendo forte tendência ao seu reconhecimento por malferimento aos direitos constitucionais à intimidade, à vida privada, à autonomia e ao princípio da proporcionalidade;

b) A Portaria nº 66/2016, da ANVISA“permite a importação de produtos” que contenham THC para tratamento de saúde; e

c) O Conselho Institucional do MPF fixou entendimento no sentido de que “a importação de pequenas quantidades de sementes de maconha não configura crime”, orientando seus ilustres membros, no exercício da atribuição de coordenação, “quanto ao não oferecimento de denúncia nesses casos”, devendo ser citados os pareceres lançados no ARESP nº 1064273/SP e no ARESP nº 1077512/SP, cujas cópias seguem em anexo. Deste último parecer, destaca-se a seguinte e elucidativa passagem:

“Conselho Institucional do Ministério Público Federal, responsável por julgar os recursos interpostos das decisões proferidas pelas Câmaras de Coordenação e Revisão do MPF, adotou entendimento semelhante, em dois casos recentes, de que a importação de sementes de cannabis pela via postal, em pequenas quantidades, não deve gerar denúncia, ante a configuração da prática do delito descrito no art. 334-A, do CP, e, neste, a incidência do princípio da insignificância, sendo homologado o arquivamento do feito levado àquela instância. No segundo caso, a ampla maioria dos conselheiros seguiu o voto do Relator, que confirmou o posicionamento anterior do órgão colegiado. A sessão de julgamento foi realizada no último dia 14 de junho de 2017” (Parecer nº 795/2017).

g) IMPORTAÇÃO DE SEMENTE DE MACONHA E CONTRABANDO.

Se, por um lado, a importação de sementes de maconha não configura o crime de tráfico internacional, pode, por outro, caracterizar o crime de contrabando. No entanto, e assim recomenda a jurisprudência, a punibilidade por este delito deverá levar em conta a “quantidade da semente de maconha importada ilegalmente” e as “condições pessoais do infrator”, conforme recomenda a jurisprudência federal (TRF 3ª Região – HC 25590 SP).

Tais vertentes sopesam a “mínima ofensividade” da conduta, a “ausência de periculosidade” do agente, o “reduzido grau de reprovabilidade” do comportamento e a “inexpressividade” da “lesão jurídica”.

Quanto à “quantidade”, sendo ínfima, como ocorre no presente caso, de importação de apenas “16 unidades”, imperativa se mostra a incidência do princípio da insignificância, reconhecida causa de atipicidade material pelo direito penal contemporâneo, pois inexpressiva lesão jurídica ao bem tutelado pelo contrabando diante do pequeno valor do preço das sementes – ao redor de cem reais. E, quanto às “condições pessoais do infrator”, são amplamente favoráveis à Acusada, primária, de bons antecedentes e abonada personalidade e conduta social.

Desse modo, além de atípico em relação ao tráfico, também não seria caso de eventual reclassificação penal do fato denunciado para o tipo e consequente punição por contrabando.

IV – DA AMPLA DEFESA.

No indeclinável cumprimento de seu dever, a defesa técnica, na perspectiva do princípio da ampla defesa, para a hipótese não esperada de serem desacolhidos os demais apresentados nesta petição, suscita, como argumentos derradeiros e subsidiários visando solução mais benéfica ao status libertatis da Acusada:

a) desclassificação do fato para o tipo do art. 28, sendo necessário observar, inclusive para evitar aparente contradição defensiva, que o referido artigo não tipifica o ato de adquirir ou importar matéria-prima ou insumo para a preparação de droga, mas apenas a conduta de semear, cultivar e colher planta destinada à preparação de pequena quantidade de substância entorpecente, e também que, mesmo se considerasse a simples importação de sementes como conduta subsumível no § 1º do art. 28, na forma tentada, seria impunível, uma vez que as penas nele cominadas não comportam combinação com a regra do § único do art. 14 do CP; ou, em última e mais amarga opção sentencial, a

b) desclassificação do fato para o tipo privilegiado do art. 33, § 4º, considerando a primariedade, bons antecedentes e a circunstância de a Acusada não se dedicar a atividades criminosas nem fazer parte de organização criminosa.

V – DOS REQUERIMENTOS FINAIS.

Diante das razões expostas, com explícito prequestionamento do art. 5º, incs. X e XXXIX, da CF, dos arts. 1º e 14, inc. II, do CP, do art. 386, inc. III, do CPP, e dos arts. 28, 33, caput, §§ 1º, inc. I, e 2º, e 40, inc. I, da Lei nº 11.343/2006, por seu defensor constituído, requer:

a) A improcedência da presente ação penal movida pelo Ministério Público Federal, com o decreto da sua absolvição com fundamento no art. 386, inc. III, do CPP; ou

b) Na hipótese de juízo condenatório, seja este com base no art. 28 ou, como dito supra, em último caso, no art. 33, § 4º da Lei nº 11.343/06.

Encerra suas alegações com a reprodução de outra pedagógica passagem do Parecer nº 795/2017, exarado pelo MPF em semelhante causa penal de importação de sementes de maconha:

“A conduta pode ser considerada fato típico previsto como tráfico de entorpecentes (art. 33, §1°, I e II, da Lei 11.343/06)?  

A posição defendida nessa manifestação é que a importação de sementes de maconha não pode ser enquadrada como tráfico de entorpecentes em razão dos argumentos abaixo expostos:

Primeiro, porque não é a semente, mas plantas específicas produzidas a partir dela – adultas e preferencialmente fêmeas – é que constituem, estas sim, matéria-prima para a preparação de droga (flores).

Segundo, porque não faria sentido que a lei criminalizasse a preparação da preparação ou o perigo do perigo, antecipando tão extensamente a tutela penal da saúde pública, e, pois, tipificasse a simples aquisição de semente para semeadura, cultivo e colheita da planta.

Terceiro, porque, se assim fosse, violar-se-ia o princípio da ofensividade, seja porque a semente não dispõe do princípio ativo, seja porque não é passível de utilização para a efetiva preparação de droga.

Quarto, porque a lei só penaliza as condutas que imediatamente, e não apenas mediatamente, estão destinadas à produção de droga. Ainda que alguém pudesse antecipar essa previsão, pode- se dizer que seria um “chute”, já que a probabilidade de erro sobre a afirmação de que a semente necessariamente germinará e produzirá uma planta adulta e fêmea, com flores, é altíssima – 96,58%, como demonstrado pelo estudo publicado na Revista Perícia Federal, aliado ao documento produzido pela UNODC – e havendo dúvida razoável sobre a incidência ou não do tipo penal, há de prevalecer a tese mais favorável ao réu (in dubio pro reo).

Ofender-se-ia, ainda, o princípio da legalidade, já que é evidente que semente de maconha não se presta, a rigor, à preparação de droga, a não ser muito indireta e remotamente, como ato final, em poucos casos, por meio da semeadura, cultivo, colheita da planta e produção de flores. Tanto é assim que o art. 33, §1°, II, da Lei 11.343/06, pune a conduta de quem “semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas”.

[…] Daí porque os entendimentos firmados por essa Corte Especial, de que “A importação clandestina de sementes de cannabis sativa (maconha) configura o tipo penal descrito no art. 33, § 1º, I, da Lei n. 11.343/2006″11, e de que “O fruto da planta cannabis sativa lineu, conquanto não apresente a substância tetraidrocanabinol (THC), destina-se à produção da planta, e esta à substância entorpecente, e sua importação clandestina amolda-se ao tipo penal insculpido no artigo 33, § 1º, da Lei n. 11.343/2006 (…)”( AgRg no REsp 1.609.752/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 01/09/2016), não encontram respaldo científico nas mais atuais pesquisas e diretrizes internacionais, pois embora a lei criminalize o tráfico de droga propriamente dito (art. 33, caput) e equipare tanto a conduta de quem semeia, cultiva e colhe planta que se constitui em matéria-prima para a preparação da droga ilícita (art. 33, §1°), essa não tipifica, justificadamente, os atos antecedentes, a exemplo da aquisição/importação (etc.) de semente de maconha, e, ainda que tipificasse, a legalidade dessa norma seria contestável, já que a semente de maconha sequer pode ser considerada droga ou matéria-prima e insumo aptos a gerar droga com absoluta certeza.

E não havendo certeza, portanto, deve-se operar o “in dubio pro reo”, como demonstrado.

Sob a perspectiva da Lei de Drogas, a importação de sementes de maconha é, portanto, fato atípico (grifamos).

Nestes termos, espera JUSTIÇA.

De Porto Alegre para XXXX, em 10 de janeiro de 2018.

CARLOS OTAVIANO BRENNER DE MORAES,

OAB/RS 12.209.

Share this