“Um Crime de Mestre” e dois julgamentos pelo mesmo fato.

O FILME.

Em “Um Crime de Mestre”, filme exibido pelo Netflix, Ted Crawford, personagem de Anthony Hopkins, decide assassinar a esposa Jennifer, quase trinta anos mais jovem e bonita. Deseja vingar-se da sua traição conjugal com Rob Nunally, tenente do Departamento de Polícia de Los Angeles.  

Informando-se através de investigador particular sobre a identidade do amante, marca e modelo da pistola por ele utilizada, comprou uma igual e planejou, com inegável maestria, duas trocas das armas.   

A primeira, no dia e algumas horas antes do crime, quando entrou no quarto do hotel em que o casal mantinha os encontros furtivos aproveitando-se de estarem distraídos durante banho de piscina. Deixou a sua e levou a pistola do policial. Na sequência, foi para casa e aguardou o retorno da mulher, quando, depois de uma breve discussão, mas não sem antes revelar-lhe conhecimento do caso extraconjugal, com a pistola do tenente e amante, desferiu um tiro na sua cabeça, e outros três contra vidraças das janelas para alertar os jardineiros a chamarem a polícia, tendo permanecido na casa até a chegada da força policial.

A segunda troca deu-se depois do crime praticado, quando o policial Rob, o amante, que Ted sabia seria o responsável pelo atendimento da ocorrência, pois chefe do setor de sequestros, ao querer entrar na casa para apurar o que nela acontecera, retirou a pistola da cintura e a colocou sobre móvel fora do seu alcance, atitude proposta por Ted, que também despojou-se da arma que portava ao colocá-la no chão. Como Rob não sabia que sua amante era mulher de Ted, ao vê-la prostrada, ferida e exangue, perturbou-se de tal forma que não percebeu que Ted novamente trocara as pistolas, passando às suas mãos a arma que não fora utilizada no crime e que sabia que a perícia assim concluiria. Ao sair da casa conduzindo-o à prisão, o policial também pegou a outra arma, aquela que deixara sobre um móvel, pensando fosse a sua, mas que, de fato, era a arma do crime.  

No tribunal, depois de renunciar à assistência de advogado e promovendo a  própria defesa, Ted retratou-se da confissão da autoria. Alegou coação pela presença do policial que o prendeu na sala de interrogatório, com a revelação ao júri, que a todos surpreendeu, mas especialmente ao promotor e à juíza, que o policial era amante da vítima.

Desqualificada a confissão em virtude de tal circunstância, constando do laudo pericial que a arma apreendida era zero quilômetro, jamais tinha sido usada, e que a arma efetivamente utilizada pelo criminoso não foi encontrada apesar das buscas feitas pela promotoria no local do delito, sem que tivesse Ted saído de casa entre os quatro disparos e a chegada dos policiais, ele requereu à juíza e foi absolvido da acusação de tentativa de homicídio por falta de provas, tal qual havia planejado.

Passado o julgamento e em liberdade, estando a vítima diagnosticada com morte encefálica desde o fato, Ted autorizou o desligamento das máquinas que a mantinham em vida vegetativa, o que permitiu perícia no projétil extraído do crânio do cadáver, que concluiu ter sido desferido pela arma do policial.

Tal circunstância levou Beachum, personagem de Ryan Gosling, vaidoso e eficiente promotor com histórico de 97% de vitória nos casos em que atuou, que estava prestes a ingressar num bem-sucedido escritório de advocacia e tinha por derradeira missão pública a aparente fácil condenação de Ted, a descobrir o plano, ir ao encontro de Ted em sua casa e a desmascará-lo quanto à substituição das armas, anunciando-lhe um novo processo, então sob a acusação de homicídio consumado.

NOVO JULGAMENTO.

Tendo sido processado e julgado pela conduta de efetuar o disparo na esposa com o dolo de matá-la, poderia o promotor novamente acionar a justiça criminal contra Ted, ainda que a título de homicídio consumado pela conduta que autorizou fossem as máquinas desligadas?

Não.

O diagnóstico da morte é médico. Ocorre quando constatada a perda completa e irreversível das funções do encéfalo, que compreende cérebro, cerebelo e tronco encefálico, com comprometimento irrecuperável da vida de relação e da coordenação da vida vegetativa. Designa-se “morte encefálica”.[1]

No Brasil, a lei dos transplantes,[2] que incorpora ao ordenamento jurídico o conceito médico de “morte encefálica”,[3] exatamente por isso permite a retirada de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano para fins de transplante ou tratamento quando concomitantemente presentes o coma caracterizado pela respiração assistida, a ausência de resposta a estímulo externo, a inexistência de reflexos do tronco encefálico e a apneia,  diagnosticados mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos estabelecidos como protocolo por resolução do Conselho Federal de Medicina.[4]

Assim, o ato de desligar a ventilação ou as máquinas não causou a “morte” da infiel esposa.

Ela estava morta desde o momento em que o projétil de arma de fogo alojou-se no seu crânio e causou perda completa e irreversível das funções do encéfalo e da consciência, com ausência de reflexos, falta de sinais eletroencefalográficos, de capacidade de autonomamente respirar, manter a temperatura ou pressão necessárias para a sobrevivência.[5]

Foi morta pelo disparo da arma de fogo intencionalmente efetuado por Ted, não pelo desligamento dos aparelhos hospitalares.

Houve, portanto, um erro na acusação por tentativa de homicídio. Deveria ter sido por homicídio consumado, ainda que a vítima estivesse hospitalizada, mas como cadáver e não mais como pessoa titular do bem da vida humana, já destruído pela criminosa ação do marido.

Este erro na definição, classificação legal ou roupagem jurídica do fato natural não pode ser corrigido. O mesmo fato, no caso consistente no disparo efetuado por Ted contra Jennifer com o intuito de matá-la por vingança, não permite um segundo julgamento criminal.

Novo processo para discutir mesmo fato contra mesma pessoa já definitivamente julgado é vedado pelo princípio do ne bis in idem, consagrado na Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que enuncia: “O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.”[6]

Pode ser injusta a regra do ne bis in idem na situação relatada no filme, mas, em geral, como lembra Jorge Coutinho Paschoal, “tal opção legislativa teve por fim resguardar a segurança jurídica do cidadão, uma vez que a paz e sossego das pessoas necessitam da firmeza do julgado proferido, sendo que, ao se admitir a rescisão de sentenças favoráveis ao indivíduo, isso pode levar a uma situação de tamanho temor e de tal insegurança jurídica não condizente com um Estado que se pretenda de Direito, arrastando-se as angústias do cidadão processado e julgado por período indeterminado, situação que, por certo, cabe à Justiça repelir.”[7]

Ou, como diz Donald Eric Burton, “sem proteção contra a dupla incriminação, a capacidade do réu de conduzir sua vida seria impedida pelo medo de nova exposição à vergonha, ao custo e ao suplício do processo. Assim, a garantia protege o interesse do acusado à tranquilidade, ou seu interesse em poder, de uma vez por todas, concluir seu confronto com a sociedade.”


[1] De acordo com Eric Grossi Morato, o termo morte encefálica surgiu no final da década de 50, inicialmente descrita coma depasée. A realização do primeiro transplante cardíaco na África do Sul, em 1967, destacou a necessidade de critérios mais específicos para a determinação do coma irreversível e, assim, de quais pacientes poderiam doar órgãos. A Faculdade de Medicina de Harvard, em 1968, organizou um comitê composto de 11 profissionais, sendo sete médicos, um biólogo, um historiador, um jurista e um sociólogo, para definir critérios que permitissem conceituar o estado de coma irreversível, que incluíam coma sem resposta, ausência de movimentos,  de respiração, de reflexos do tronco cerebral associado a EEG isoelétrico. O Royal College of Medicine da Grã-Bretanha introduziu, em 1976, o teste da apneia como tentativa de padronizar e especificar alguns dos critérios já utilizados desde 1968 e também introduziu a opção de se utilizarem outros exames complementares além do eletroencefalograma. O conceito de que a lesão completa do tronco cerebral era incompatível com a vida foi determinado nessa revisão. A presença de reflexos medulares, observados em 20 a 70% dos pacientes, não foi considerada inviabilizadora do diagnóstico de morte encefálica. Os critérios atuais de morte encefálica são mundialmente aceitos e respaldados por leis específicas (Morte encefálica: conceitos essenciais, diagnóstico e atualização. Revista Médica de Minas Gerais, vol. 19.3, p. 227-236, Jun/Ago, 2009).

[2]  Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.

[3] Vale observar que morte encefálica não é o mesmo que morte cortical, pois nesta há unicamente o comprometimento da vida de relação, permanecendo reguladas pelo tronco cerebral a respiração e a circulação, sem a necessária ajuda de meios artificiais.

[4] Resolução 1.480/97, atualizada pela Resolução 2.173/17. Envolve uma série de procedimentos e exames clínicos por dois médicos que não participem das equipes de remoção e de transplante, tenham experiências mínimas de um ano no atendimento de pacientes em coma e dez diagnósticos de morte encefálica, especializados em medicina intensiva, neurologia, neurocirurgia ou medicina de emergência.

[5] Dentre as principais causas da morte encefálica, físicas ou patológicas, destacam-se o traumatismo craniano provocado por agressões na cabeça, o edema cerebral, o aumento da pressão intracraniana decorrente de doenças ou traumas, a parada cardiorrespiratória por vento patológico, falta de oxigênio no cérebro, acidente vascular cerebral interrompe a irrigação do cérebro pelo sangue, tumores cerebrais e overdose de medicamentos ou drogas ilícitas. Em todas essas causas da morte cerebral, uma grave agressão ao encéfalo paralisante das atividades vitais do paciente é o denominador comum.

[6] Art. 8º, 4.

[7] Ninguém pode ser julgado duas (ou mais) vezes pelo mesmo fato, https://emporiododireito.com.br/leitura/ninguem-pode-ser-julgado-duas-ou-mais-vezes-pelo-mesmo-fato

[8] Um olhar mais atento sobre a Suprema Corte e a cláusula de dupla incriminação. Jornal de Direito do Estado de Ohio,Columbus, v. 49, n. 3, 1988, p. 803.

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