Crime de dano de bem cultural.
A Lei 9.605/98, conhecida por Lei dos Crimes Ambientais, no seu art. 62, inc. I, inserto na seção que trata da tutela penal do ordenamento urbano e patrimônio cultural, descreve o seguinte fato-crime: Destruir, inutilizar ou deteriorar bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial.
Essa modelagem ou tipo objetivo do delito reproduz as mesmas três condutas de cometimento da modalidade geral do crime de dano do art. 163 do Código Penal.[1]
Porém, inclui um atributo jurídico ao seu objeto material que especializa o delito em relação ao tipo geral de dano.[2] Deve ser um bem cultural assim reconhecido por lei, ato administrativo ou sentença judicial, e especialmente protegido por um regime jurídico de tombamento, inventário, registro, vigilância ou outra forma de especial acautelamento e preservação, conforme dispõe o art. 216, § 1º, da Constituição Federal.
Portanto, bem especialmente protegido, circunstância elementar normativa do inc. I do art. 62,[3] é somente aquele que tenha sido objeto de alguma das formas de acautelamento e preservação estabelecidas na Constituição por qualquer instância e esfera estatal.[4] Pelo princípio da proteção incorporado no preceito constitucional do § 1º do art. 216, incumbe ao Poder Público definir espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos.
Exato por isso, a Lei dos Crimes Ambientais, ao regulamentar o preceito constitucional de punição “na forma da lei” aos responsáveis por danos e ameaças ao patrimônio cultural,[5] incluiu a elementar normativa bem especialmente protegido. Além da presença de atributo que justifique o reconhecimento do bem por seu valor cultural, deve haver o ato estatal deste reconhecimento por uma daquelas vias constitucionais do § 1º do art. 216, materializada em lei, ato administrativo ou sentença judicial, conditio sine qua non para submissão do bem cultural a regime jurídico especial de proteção e de conservação. O inc. I do art. 62 encerra uma norma penal em branco que necessita de complementação para determinação do bem especialmente protegido. Pois, a lei, o ato administrativo e a sentença judicial são os complementos. A compreensão do dispositivo reclama pesquisa em outras normas, atos administrativos e decisões judiciais, para se saber quais são os bens especialmente protegidos a que se refere.[6]
Doutrina uníssona discorre:
- Só haverá crime ambiental se o bem estiver protegido por ato estatal.[7]
- Para a caracterização do delito é necessário que o bem esteja protegido por lei, ato administrativo ou por decisão judicial. Caso contrário, não há de se falar em crime.[8]
- Quando se tratar de bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, a conduta se subsumirá ao art. 62 da Lei n. 9.605/98, cuja pena é de reclusão, de um a três anos, e multa.[9]
- Para a conformação típica, a conduta, dolosa ou culposa, deve recair sobre bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial (inciso I).
- Por bem especialmente protegido entenda-se bem material ou imaterial, móvel ou imóvel, sobre o qual recaia especial proteção em razão de lei, ato administrativo ou decisão judicial. Exemplo: imóvel que, sendo de interesse público em razão de seu valor histórico, arqueológico ou paisagístico, deva ser tombado, ou seja, deva ser conservado e protegido pela União, Estado ou Município.[10]
Em decorrência, respeitosa vênia, não procede a assertiva de que a proteção especial elementar do tipo decorreria do art. 216, inc. IV e § 1º, da Constituição Federal, constante do acórdão do Tribunal de Justiça do RS.[11]
O preceito constitucional assegura que os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais dentre outros se incluem as criações, obras e objetos artísticos ou culturais, constituem patrimônio cultural brasileiro, determinado ao Poder Público, ex vi de seu § 1º, promover e salvaguardar o patrimônio cultural por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação, e punir os danos e ameaças ao patrimônio cultural mediante a elaboração de lei, nos acrescenta o § 4º.
Além de frontal oposição à doutrina ambiental consolidada, que reconhece a exigibilidade do prévio ato estatal de resguardo como condição à incidência do inc. I do art. 62, a assertiva do julgado despreza a expressa menção feita pelo dispositivo à lei, ao ato administrativo e à sentença judicial, como três fontes de especial proteção, sendo certo que as palavras da lei devem ser compreendidas como tendo algum significado jurídico, não se presumem na lei palavras inúteis, na conhecida tradução de Carlos Maximiliano ao célebre brocardo e postulado interpretativo Verba cum effectu sunt accipienda.[12] Outrossim, não constaria do § 4º daquele mesmo artigo da Constituição que os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei, tarefa cumprida pela Lei dos Crimes Ambientais, de cujo corpo normativo o art. 62, inc. I, é parte integrante e em plena vigência.
Conclusivamente:
- Imprescindível provar que o bem sobre o qual recai a tutela do art. 62 se encontra especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, fazendo juntar o texto respectivo aos autos. Sem tal demonstração, eventual denúncia formulada pelo Ministério Público não deve ser recebida, porquanto ausente justa causa para a instauração da persecução penal em juízo.[13]
- Entende-se, ante a ampla proteção perseguida pelo art. 216, § 1.º da Carta Magna, que alcança: qualquer lei, seja ela estadual, municipal ou federal; o ato administrativo não mais se restringe ao tombamento, mas inclui o registro, inventário, vigilância e outros que visem dar tutela ao patrimônio cultural; porém, especificamente sobre a sentença judicial, acolhe-se o entendimento de deve ser transitada em julgado, pela gravidade do processo penal. Para efeitos penais, há necessidade de que a decisão já tenha transitado em julgado, pois o agente será submetido a um processo penal de natureza grave, não podendo tratar-se de uma decisão suscetível de reforma.[14]
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[1] Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia.
[2] Comparadas in abstrato, a norma penal do art. 163 do CP, cujo comando é o de não destruir, inutilizar ou deteriorar, destina-se à generalidade dos casos de dano de coisa alheia, não exigindo qualquer qualidade ou condição do objeto material da conduta típica. Por seu caráter genérico diante de outros tipos, Hungria o dizia crime sempre absorvido, nunca absorvente, enquanto a norma do inc. I do art. 62, embora de igual comando proibitivo, acrescenta elementos ao objeto material da conduta que a especializam. A coisa deve ter o predicado de bem cultural, assim reconhecido e resguardado por ato específico do poder público.
[3] A dogmática penal identifica e designa circunstância elementar normativa, aquela que componha a estrutura da definição do delito, por isso elementar, não perceptível sensorialmente ou de natureza concreta, cujo significado e alcance dependem de um juízo de valor.
[4] A proteção pode ser feita através de lei federal, estadual ou municipal, conforme disposto na Constituição da República (arts. 24, VII e VIII e 30, IX). Paulo Affonso Leme Machado observa que não há qualquer vedação constitucional para que o tombamento seja realizado diretamente por ato legislativo federal, estadual ou municipal, ou seja, o mesmo bem pode ser tombado pelas três esferas políticas. A proteção via Poder Legislativo, contudo, tem sido a exceção. Normalmente, o tombamento origina-se de ato do Poder Executivo, que, inclusive, dispõe de órgãos técnicos capacitados para emitir tal juízo de valor (2014, p. 1126).
[5] Art. 216, § 4º da Constituição.
[6]Renato Flavio Marcão. Crimes Ambientais. Saraiva. Edição do Kindle – Locais do Kindle 11073-11075.
[7] Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas. Reflexões sobre a proteção penal do patrimônio histórico e cultural brasileiro, Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 88-113, jan./jun. 2015.
[8] Luís Paulo Sirvinskas, Tutela Penal do Meio Ambiente, p. 98.
[9] André Estefam. Direito Penal Parte especial – Vol. 2 – 7ª edição de 2020, p. 713. Editora Saraiva.
[10] Renato Flavio Marcão. Crimes Ambientais. Saraiva. Edição do Kindle – (Locais do Kindle 11081-11087).
[11] Proferida pela 4ª Câmara Criminal, no âmbito do processo 70068882414.
[12] Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: GEN, 2011, p. 204.
[13] Renato Flavio Marcão. Crimes Ambientais – Saraiva. Edição do Kindle. Locais do Kindle 11108-11115.
[14] Luís Paulo Sirvinkas. Tutela penal do meio ambiente: breves considerações atinentes à Lei 9.605, de 12.02.1998. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, p. 207.