Sociedade da Neve
Sociedade da Neve, filme atualmente exibido pela Netflix, conta trágico episódio ocorrido nos Andes Chilenos em 13 de outubro de 1972.
O avião que transportava para Santiago a equipe uruguaia de rugby Old Christian caiu na cordilheira. Instantaneamente, 16 pessoas morreram. Outras 13, faleceram durante o longo período em que estiveram expostas ao inóspito ambiente, altitude de 4 mil metros, temperatura de até 30 graus negativos e sem comida.
As buscas de sobreviventes e destroços da aeronave não tiveram sucesso. Desesperados, os sobreviventes, após acalorada discussão sobre o consumo de carne das pessoas mortas, firmaram como que um pacto contra a morte nas isoladas montanhas cobertas de neve, alimentando-se com os restos de seus companheiros. Duas delas, por estarem em melhores condições físicas, saíram numa desesperada busca de socorro pela neve. Mais de dez dias depois, encontraram ajuda e as demais 14 foram resgatadas.
Antropófago, é a pessoa que come carne humana. A antropofagia, em si, não configura um fato criminoso previsto na lei penal. Porém, pode caracterizar o delito de destruição ou de vilipêndio de cadáver, ambos previstos no Código Penal.
Nas circunstâncias, o consumo da carne dos companheiros falecidos foi recurso extremo à salvação da vida dos sobreviventes, juridicamente justificado pelo chamado estado de necessidade.
A melhor monografia sobre o tema estado de necessidade, de autoria do saudoso professor e promotor de Justiça gaúcho Alberto Rufino Rodrigues de Souza, narra casos de antropofagia com todas as suas dantescas características, dos quais destacamos dois.
O primeiro, em 5 de julho de 1844, quando realizava a travessia entre Southampton e a Austrália, o iate La Mignonnette naufragou. Conseguiram salvar-se, numa pequena canoa, quatro homens da tripulação, entre eles o grumete Parker, com apenas 16 anos de idade. Ao fim de dezoito dias no mar, quando a água e os víveres já se haviam se há muito esgotado, e acossados pela fome, decidiram os marinheiros matar o grumete, e com o consumo do seu sangue e carne conseguiram prolongar suas vidas até o vigésimo quarto dia consecutivo ao naufrágio, quando foram recolhidos por um navio alemão. O segundo, à margem de um riacho no território de Touroukhaus (Sibéria Oriental), Procópio Kalinin estabelecera o seu acampamento, juntamente com seus irmãos Nikita, David e Maria, uma menina de 11 anos. Viviam com o produto da pesca, que veio a faltar depois de algum tempo. David pôs-se a caminho, para encontrar lugar mais propício. Os três que ficaram sentiram-se morrer de fome e inanição e então Procópio matou a menina e comeu sua carne, juntamente com Nikita.
Lon Fuller, para escrever a estória dos exploradores presos na caverna de Newgarth, conhecida por quase todos os estudantes de Direito, inspirou-se em dois casos reais e polêmicos julgados pela justiça norte-americana, “US v. Holmes” (1842), em que alguns homens foram mortos ao serem jogados ao mar para aliviar o peso do bote salva-vidas e salvar a vida dos demais, e “US v. Regina Dudley & Stephens” (1884), de canibalismo, em que os homicídios foram cometidos como forma de obter alimento para os sobreviventes à beira da morte pela fome.