“Tempo de matar”, vingança e justiça pelas próprias mãos.
Em “Tempo de Matar”, filme de 1996 com excelente elenco, na cidade de Canton, estado norte-americano do Mississipi, dois homens brancos, embriagados e racistas, agrediram e estupraram uma menina negra de dez anos de idade.
Não satisfeitos, urinaram e jogaram latas cheias de cerveja no seu corpo, com golpes que dilaceraram a pele e expuseram ossos. Amarrando corda ao seu pescoço, tentaram enforcá-la numa árvore, cujo galho não resistiu e quebrou. Então, colocaram a menina dentro de uma camionete e a jogaram de uma elevada com 9 metros de altura. Ela felizmente sobreviveu, mas ficou incapacitada de se tornar mãe devido às lesões sofridas no útero.
Presos e levados ao tribunal, os estupradores foram surpreendidos e mortos pelo pai da menina, Carl Lee, com uma saraivada de tiros de metralhadora, alguns dos quais, por erro na pontaria, atingiram gravemente um policial da escolta, tudo na presença de várias testemunhas. Carl foi imediatamente preso e teve negada fiança.
A população, influenciada pelo marcante racismo na região, dividiu-se entre brancos e negros, com atos de extrema violência por parte de membros da KKK, transformando a cidade num barril de pólvora. No julgamento, o juiz dificulta o trabalho do advogado de defesa, Jake Brigance, ao proibi-lo de fazer qualquer menção ao motivo que levara o pai a praticar o duplo homicídio, por se tratar de julgamento de assassinato e não de estupro.
À luz da legislação brasileira, o duplo homicídio cometido é fato punível, pois a ninguém é dado “fazer justiça pelas próprias mãos”.
Mas, pelo motivo determinante do ato de justiçamento,[1] os homicídios receberiam enquadramento na modalidade privilegiada do delito, com pena reduzida. Quis o pai fazer justiça pelas próprias mãos motivado por um relevante valor moral, a inocência da pequena filha agredida de forma brutal.
Extraído dos princípios éticos, o valor moral é um interesse reconhecido pela consciência ética de um povo. Possui variações de conteúdo, de relevância e de momento histórico conforme a cultura, a educação, a tradição e até mesmo o sentimento religioso de um específico núcleo social.
Tornado motivo para o cometimento do homicídio, este sentimento pessoal pode adquirir relevância pela sociedade e justificar o menor apenamento, não a absolvição do agente, dado que ninguém pode fazer justiça pelas próprias mãos. Rogério Greco diz que ser “um motivo egoisticamente considerado, a exemplo do pai que mata o estuprador de sua filha.”[2]
As mortes dos dois homens intencionalmente causadas por Carl Lee, como forma de concretização do sentimento pessoal de justiça, evidentemente envolveram o desejo de vingança, e a vingança, como ato de represália, desforro, castigo, punição, é sempre ilícita, pelo seu significado de desconformidade com os padrões de conduta estabelecidos pelo ordenamento jurídico.
Quem vinga, não percorre o caminho sinalizado pelos comandos jurídicos. Bem diz Busato, “Obviamente, em uma sociedade de padrão desejável, a vingança não é um valor moralmente apreciável ou positivo.”[3]
Todavia, dependendo do móvel que a originou, a vingança pode receber certa dose de assimilação pela moralidade média,[4] como ocorreu no próprio filme, em que boa parcela da comunidade, inclusive o guarda que foi vítima dos disparos, não censurou a vingança de Carl Lee devido ao motivo moral que a determinou.
Lembra Souza Nucci, que “A moral média – espelhada em livros, revistas, contos, novelas, filmes etc. – nem sempre elege a vingança como motivo a causar asco à sociedade. Fosse assim e não existiriam tantas histórias contendo a vingança como pano de fundo, justamente praticada por aquele que foi agredido injustamente e resolve fazer justiça pelas próprias mãos”, advertindo o Autor que “Não se quer com isso dizer que a vingança é motivo justo ou mesmo ideal de agir.”[5]
Totalmente diferente seria a avaliação da vingança, quando desse azo ao homicídio do magistrado pela condenação que impôs ao agente, ou ao homicídio do usuário por não haver pagado dívida de compra de drogas ao traficante.
Assim, a solução jurídica da vingança deve ser tópica, analisada caso a caso.[6]
Nessa perspectiva, no Brasil, salvo se o júri em razão da sua soberania quisesse absolvê-lo, [7] penalmente correto seria a condenação de Carl Lee por dois crimes de homicídio, ambos na modalidade privilegiada prevista no art. 121, § 1º, do Código Penal, com redução da pena, entre 6 e 20 anos para cada um dos delitos, de um sexto a um terço.
Quanto ao fato contra o policial, não foi de tentativa de homicídio, mas de lesões corporais, crime cuja pena ficaria absorvida pela pena do homicídio (art. 70 do Código Penal), pois os disparos que o atingiram foram acidentais, por erro na pontaria que tinha os dois homens de alvo.
Discordamos de uma possível absolvição do pai da menina com base na tese da “inexigibilidade de conduta diversa ao comando normativo não-matar alguém”.
Embora amplamente aceita pela doutrina penal e pelos tribunais, discordamos da sua aplicação na situação do filme.
A tese pressupõe um alto grau de anormalidade das circunstâncias concretas do episódio em que a pessoa se vê envolvida, a ponto de excederem a natural capacidade humana de resistência às pressões externas.
E isto não ocorreu com Carl.
Ele, mesmo intensamente abatido pelo episódio que vitimou a filha, planejou o duplo homicídio. Foi antes ao tribunal para ver o melhor lugar no qual poderia esconder-se para de lá sair e surpreender a todos na cena do crime. Procurou advogado para comprometê-lo em sua defesa no processo criminal. Teve tempo, fora do tempo e do calor dos fatos que poderiam irresistivelmente levá-lo a matar, para resistir ao impulso de fazer justiça pelas próprias mãos.
[1] Motivos determinantes são o “porquê” do delito. Dão o colorido jurídico e moral a todo o ato humano. Por ser um crime que pode resultar dos mais diversos impulsos da alma humana, encontramos no homicídio o maior leque de possibilidades de motivações determinantes. Motivações morais e imorais, sociais e antissociais, lícitas e ilícitas, escusáveis e inescusáveis, da piedade à vingança, do altruísmo à vaidade criminal, têm determinado o ato de matar no curso da história da humanidade. Pelos motivos, afere-se a maior ou menor reprovabilidade da conduta do agente. Verifica-se a posição do agente frente ao ordenamento jurídico, como mais ou menos repreensível. Deduz-se o juízo de desvalor do ânimo que expressam, direta e exclusivamente.
[2] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 18 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2016, v. II, p. 145. Em Varginha, Minas Gerais, um pai, advogado, matou o cunhado, empresário, carbonizado dentro de um automóvel, por haver estuprado a filha aos 8 anos e dela abusado sexualmente até os seus 14 anos de idade.
[3] BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte especial. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2017, vol. 2, p. 39.
[4] Noticiado pela BBC, o caso ocorrido na Índia, de um homem que torturou e matou o estuprador de sua filha de 13 anos de idade, entregando-se logo após à polícia de Nova Déli e dizendo acreditar que a vítima merecia a tortura. O episódio causou enorme repercussão no país, sendo que muitas pessoas viram o pai como um herói. De acordo com relatos dados à polícia, o estuprador, que era inquilino da família, foi amarrado, amordaçado e teve os órgãos genitais queimados pelo pai da menina, com o uso de uma espátula de aço aquecida no fogão, que resultou na sua morte. Da mesma matéria jornalística, constam algumas manifestações populares a respeito do crime. “Qualquer pai faria isso”, disse à BBC Mohammad Ayub, que dirige riquixás e faz ponto a menos de um quilômetro do local do crime. “Para que ir à polícia e a tribunais? Eles pedem todos os tipos de prova. Em nosso país, a Justiça demora muito. Justiça deve ser feita em dois meses, mas aqui os casos levam seis ou sete anos.” Seu colega Noor Mohammad diz que o pai não deve ser punido. “O que ele fez foi certo e ele deveria ser libertado”. O inspetor Arvind Pratap Singh, que está à frente da investigação, disse que nunca viu um caso como este. “Nós geralmente temos que perseguir assassinos, eles não vêm à delegacia por conta própria”, diz ele. “Entendo a simpatia de todos com ele (o assassino), mas temos que nos ater à lei. Ele cometeu um crime, terá que enfrentar as consequências.”[4] https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/11/141105_india_estupro_rp
[5] Código Penal Comentado, 17 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, comentários ao art. 61, nota 36.
[6] Nesse sentido: STF, HC 83.309/MS, Primeira Turma, relator Ministro Sepúlveda Pertence; STJ, HC 80.107/SP, Quinta Turma, relator Ministro Félix Fischer.
[7] Aos jurados, para que emitam o veredicto, é indagado se o fato existiu. Caso confirmem, é perguntado se o réu foi o seu autor. Se reconhecida a autoria, é quesitado se o absolvem ou não (art. 483 do CPP). Não absolvidos, são formuladas questões sobre a diminuição. qualificadora e o aumento da pena, se suscitadas pelas partes.