Filme BRONX, homicídio comissivo por omissão pelo policial.

A CONDUTA OMISSIVA DO POLICIAL.

No filme policial francês Bronx, transmitido pelo Netflix, o capitão Vronski permitiu ao prisioneiro Marenzano, enquanto o transferia de estabelecimento prisional, visitar a esposa no hospital em que estava internada, e consentiu que o prisioneiro, atendendo às súplicas da mulher, em estado terminal, a matasse mediante sufocação.

O policial, ao consentir com a ação homicida contra a mulher, fez-se também homicida, pois tinha o dever legal de agir para evitar que a agressão fulminante de sua vida fosse cometida pelo marido.

EQUIPARAÇÃO LEGAL DA OMISSÃO À AÇÃO.

No plano fenomenológico, ação e omissão não são equiparáveis. Ação é movimento, é fazer algo perceptível pelos sentidos. Omissão, ao contrário, é não fazer, não agir, não realizar algo. E do nada, nada surge.

No entanto, no plano jurídico, é admissível equiparar-se o “não fazer” ao “fazer”, da qual resultam os denominados crimes “comissivos por omissão”. O sujeito comete o crime não por realizar uma conduta, mas por omitir uma conduta devida e esperada pela ordem jurídica.

O homicídio comissivo por omissão nada tem de comissivo, uma vez que a omissão da conduta devida de salvar a vida da vítima não viola o comando proibitivo “não matar” do art. 121 do CP. A violação penal se concebe pela via do descumprimento ao “mandamento” de agir para evitar a morte.

Assim, a lei não distingue se o pai dolosamente envenena o filho ou se o deixa afogar-se numa piscina. O pai que vê o filho menor afogar-se na piscina e nada faz para salvá-lo, responde por homicídio na forma comissiva por omissão. A morte da criança não foi “fisicamente causada” pela omissão de socorro. Mas o mandamento jurídico “não matar” foi igualmente ferido. O não impedimento do resultado morte, mediante omissão ao dever de agir, equivale à causação física da morte através de um fazer ativo.

Na legislação brasileira, essa equiparação é feita pela norma do § 2º do art. 13 do CP, nos casos em que o dever agir surge de alguma das situações especificadas nas alíneas “a”, “b” e “c”, do mesmo dispositivo legal, precedidas do seguinte enunciado: “A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado.”

DESTINATÁRIOS DO DEVER DE AGIR.

A primeira classe de destinatários do dever de agir, fixada na alínea “a”, e que neste escrito nos interessam pela conexão com o filme BRONX, são as pessoas que, por lei, tenham obrigações de cuidado, proteção ou vigilância de outras.

Dentre elas, estão os policiais civis e militares, garantidores dos cidadãos em geral por força de regulamentos dos respectivos órgãos de atuação e da própria Constituição Federal. Devem agir para proteger a pessoa de ataques de terceiros (obrigações de cuidado e proteção) e para evitar que a pessoa se torne fonte de agressão a direitos de outras (obrigação de vigilância).

Diante da cena do filme, o policial tinha obrigações de cuidado e proteção da vida da indefesa mulher, apesar das súplicas por ela feitas ao marido, uma vez que a vida humana é valor indisponível, e a obrigação de vigiar o preso que conduzia para que ele não violasse direito de outra pessoa. Estava no local, em condições espaciais para agir e evitar o episódio homicida.

Por isso, apesar do artigo da lei penal que define o homicídio descrever uma conduta ativa, positiva, uma ação, “matar alguém” (art. 121 do CP), o capitão Vronski, incluindo-se dentre as pessoas que têm o dever de agir para evitar lesão a direito de terceiros, responde por homicídio na forma comissiva por omissão.  

Em igual responsabilização criminal, pelo mesmo fundamento legal do dever de agir, incorreria o delegado de polícia que, percebendo pelos gritos de dor e socorro a tortura mortal em prática contra pessoa detida por um dos seus agentes, se descumprisse o dever de intervir para fazer cessar o episódio de risco à vida da vítima. O violento episódio que culminou na morte do norte-americano George Floyd não foi obra criminal apenas do policial que o abateu letalmente. Seus companheiros de farda, que passivamente o assistiram, também descumpriram o dever de agir para evitar a consumação da morte. Cada um deles foi autor do crime, por descumprimento ao dever pessoal de cuidado e proteção decorrente da função.

Além dos policiais, incluem-se no rol dos destinatários desta primeira fonte legal do dever de agir os pais em relação aos filhos e os cônjuges ou companheiros entre si, em virtude de uma vinculação natural e jurídica que ocorre no ambiente familiar, no matrimônio e na união estável; tutores em relação aos tutelados, guardiões em relação às pessoas de quem tenham o dever de guarda firmado em termo, em virtude das normas que regem esses vínculos; agentes e diretores penitenciários, relativamente aos presidiários. Cometem homicídio comissivo por omissão o pai que não salva o filho de afogamento; a mulher que não avisa a tempo o marido de que sobre ele se dirige um automóvel; o bombeiro de serviço, com equipamento de combate disponível, que, querendo a morte do inimigo que se encontra dentro do prédio que incendeia, não intervém para debelar o fogo; o guarda carcerário que não impede a agressão mortal a preso sob sua custódia.

A posição de garantidor, nas obrigações de cuidado e proteção, envolve o dever de agir na salvaguarda da vida do garantido frente a todas as situações de risco a que o bem possa ser exposto, em todos os flancos. Na obrigação de vigilância, a posição de garantidor envolve a ação de vigiar o garantido para que ele não se faça fonte de perigo a bem jurídico alheio.

Em decorrência, cabe ao pai vigiar o comportamento do filho para que não empurre na piscina de sua casa um coleguinha que não sabe nadar e pode morrer por afogamento. Se não o fizer, resultando a morte, responde por homicídio na forma comissiva por omissão. Relata Mirabete a condenação do pai que, estando ao lado do filho menor, que portava revólver, nada fez para impedir que ele disparasse a arma, alvejando mortalmente a vítima com quem havia brigado.[1] Por descumprimento ao dever de agir, o omitente pode ser penalmente responsabilizado por homicídio comissivo quando não tenha agido para evitar o resultado morte que devia e podia ter evitado.

Tendo em vista que nem todos países possuem em seus códigos penais previsão das específicas fontes do dever de agir, tal qual se dá no código brasileiro, surge uma lçacuna legislativa que permite o reconhecimento da posição de garantidor em situações ou condições que nos parecem impertinentes diante da regra da relevância da omissão estabelecida pelo nosso CP.  O renomado professor alemão Johannes Wessels, por exemplo, reconhece garantidor em decorrência de íntima solidariedade natural, o neto em relação à vida do avô, bem como os demais parentes em parentes em linha reta, os irmãos e os noivos entre si[2].

À luz da legislação brasileira, o parentesco sanguíneo, por si só, não fundamenta a posição de garantidor. Irmãos não são garantes entre si, porque não têm por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância, um do outro, nem tem o neto o dever legal de evitar a morte do avô ou do tio. A base do dever de agir para evitar o resultado morte de alguém só pode ser de natureza jurídica, não moral, ética ou religiosa. A regra da alínea “a” do § 2º do art. 13 do CP não permite interpretação ampliativa do seu comando, sob pena de violação ao princípio da legalidade.

O STJ, em decisão unânime da sua Quinta Turma,  já se pronunciou nesse sentido.  Julgou que não é possível “ampliar” a regra da alínea “a” do § 2º do art. 13 do CP para alcançar os irmãos. Eles não possuem entre si as mesmas obrigações dos pais e o mero parentesco não torna penalmente responsável um irmão para com o outro, mesmo haja o vínculo familiar e até presumidamente uma relação afetiva, salvo casos de transferência de guarda ou tutela. A responsabilização por crime omissivo impróprio depende da existência do dever de proteção, cuidado e vigilância imposto por lei e “stricto sensu”. Hipótese legal comumente aplicável no exercício do poder familiar entre os pais e os seus filhos menores de idade, sendo clara a impossibilidade de extensão das obrigações paternas aos irmãos. [3]

Em concurso público para o cargo de Defensor Público no Estado do Paraná, constou questão em que dois irmãos nadavam num lago, quando um deles começou a se afogar, permanecendo o outro inerte, eximindo-se de qualquer intervenção. Sobrevindo a morte do irmão por afogamento, indagava a responsabilidade penal do omitente, (a) se por homicídio doloso qualificado, aplicando-se as regras da omissão imprópria; (b) homicídio culposo, também com aplicação da disciplina da omissão imprópria; (c) por crime de perigo, tipificado no art. 132 do CP (perigo para a vida ou saúde de outrem); (d) por omissão de socorro ou (e) pelo crime de abandono de incapaz,[4] estando correta a resposta de omissão de socorro, pelas razões acima apontadas. 

Por derradeiro, cumpre deixar expresso que a disciplina normativa do art. 13, § 2º e alíneas, que amplia o conteúdo “matar alguém” do art. 121 para incluir em seu âmbito “matar alguém ao deixar de realizar a conduta devida que provavelmente impediria a morte,” ao estabelecer as respectivas balizas, atende ao princípio constitucional da legalidade dos crimes e das penas.

 


[1] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Especial. 36 ed. São Paulo: Atlas, 2021, vol. 2, p. 124. Edição do Kindle.

[2] Direito Penal – Parte Geral. Tradução de Juarez TavaresDireito Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1976, p. 165.

[3] HC 603.195/PR, Quinta Turma, relatado pelo Ministro Ribeiro Dantas, por unanimidade, julgado em 06/10/2020, DJe 16/10/2020.

[4] FCC. 2012. DPE-PR. Defensor Público. Gabarito: letra “d”.

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