“Vivos”, antropofagia e situações extremas.

O filme Vivos, várias vezes exibido na televisão aberta brasileira, conta o episódio ocorrido nos Andes Chilenos, em 1972, quando o avião que transportava para Santiago a equipe uruguaia de rugby, “Old Christian”, caiu na cordilheira com a morte de 45 pessoas, incluídos os tripulantes.

As buscas de sobreviventes e destroços da aeronave duraram setenta dias, sem qualquer sucesso. Dezesseis pessoas que felizmente escaparam com vida, cinco delas jogadores, celebraram um pacto contra a morte nas isoladas montanhas cobertas de neve, alimentando-se com os restos de seus companheiros.

Duas delas, por estarem em melhores condições físicas, saíram numa desesperada busca de socorro pela neve. Mais de uma semana depois, encontraram ajuda e assim conseguiram que as demais catorze fossem resgatadas.

Nas décadas de 80 e 90, catadores de lixo consumiam partes de corpos humanos removidos em cirurgia descartadas num aterro a céu aberto de São Paulo.

Antropófago é a pessoa que come carne humana. A antropofagia, em si, não é crime, embora possa configurar destruição (art. 211 do CP) ou vilipêndio de cadáver (art. 212 do CP).  

Crime é matar alguém para consumir a sua carne.

STRYKIO, na sua monografia sobre o estado de necessidade, citado por RUFINO, relembra caro verídico de um marido que, atormentado pela fome, matou a própria mulher, esquartejou o corpo e se alimentou da sua carne. Em 2012, em Garanhuns, Pernambuco, foram presas três pessoas suspeitas de matar, esquartejar, comer e enterrar ao menos três mulheres, a partir da apreensão de um diário supostamente escrito por uma delas. 

Como expressão extrema e mais trágica dessas vicissitudes em que são colocados em confronto insuperável duas vidas humanas, ou ainda maior número, RUFINO recorda dois episódios de antropofagia, acontecidos, com todas as suas dantescas características, em diferentes épocas e sob as mais variadas circunstâncias.[1]

O primeiro, em 5 de julho de 1844, quando realizava a travessia entre Southampton e a Austrália, naufragou o iate La Mignonnette. Conseguiram salvar-se, numa pequena canoa, os quatro homens da tripulação, entre os quais o grumete Parker, com apenas 16 anos de idade. Ao fim de dezoito dias no mar, quando a água e os víveres já se haviam se há muito esgotado, e acossados pela fome, decidiram os marinheiros matar o grumete, com cujos sangue e carne conseguiram prolongar suas vidas até o vigésimo quarto dia consecutivo ao naufrágio, quando foram recolhidos por um navio alemão.  A pena de morte, imposta em Londres a dois dos acusados, foi comutada pela rainha a pena de seis meses de prisão.

O segundo, à margem de um riacho no território de Touroukhaus (Sibéria Oriental), Procópio Kalinin estabelecera o seu acampamento, juntamente com seus irmãos Nikita, David e Maria, esta uma menina de 11 anos. Viviam com o produto da pesca, que, contudo, veio a faltar, depois de algum tempo. David pôs-se a caminho, para encontrar lugar mais propício. Os três que ficaram sentiram-se morrer de fome e inanição e então Procópio matou a menina e comeu sua carne, juntamente com Nikita. Mais tarde, salvos, afinal, os dois irmãos, Procópio confessou o fato e foi condenado a vários anos de trabalhos forçados. Nikita foi absolvido, por ter sido considerado estranho ao fratricídio.

LON L. FULLER, para escrever a estória dos exploradores presos na caverna de Newgarth, inspirou-se em dois casos reais e polêmicos julgados pela justiça norte-americana, “US v. Holmes” (1842), em que alguns homens foram mortos ao serem jogados ao mar para aliviar o peso do bote salva-vidas e salvar a vida dos demais, e “US v. Regina Dudley & Stephens” (1884), de canibalismo, em que os homicídios foram cometidos como forma de obter alimento para os sobreviventes à beira da morte pela fome.


[1]Estado de Necessidade: um conceito novo e aplicações mais amplas. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p 101-102.

[2]Tratado de Derecho Penal. Tratado de derecho penal. Tradução de Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: Ediar, 1948, vol. III, p. 124.

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