Corrupção eleitoral e necessária identificação do eleitor.

A propósito das eleições que ocorrerão neste ano de 2022, quando novos casos de corrupção provavelmente serão levados ao conhecimento da justiça, conveniente relembrar que a denúncia por corrupção eleitoral deve indicar o eleitor beneficiado em troca de voto.

Comete crime de corrupção eleitoral aquele que dá, oferece, promete, solicita ou recebe, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita. É o que enuncia o tipo do art. 299 do CE, dispositivo de natureza penal que tutela o livre exercício do voto.

“Voto”, como elemento normativo jurídico do tipo da corrupção eleitoral, exige a identificação do corrupto passivo para que se possa saber se, de fato, ele é eleitor e se é eleitor da eleição em que a corrupção teria havido.

A identificação é medida impositiva ao enquadramento típico do fato. Funciona como condição de validade da imputação (art. 41 do CPP).

Como saber se a pessoa que teria sido beneficiada é ou não eleitor apto a votar na eleição questionada?

Exemplificando essa essencialidade de determinação ou identificação do eleitor, numa comarca do interior de Minas Gerais, em processo criminal por corrupção eleitoral, foi comprovado que a pessoa beneficiada com a doação de um saco de cimento e com promessa de recompensa estava, à época dos fatos e das eleições de 2008, com os direitos políticos suspensos, em virtude de condenação criminal transitada em julgado. Isso levou o TSE a decidir que não haveria de se falar em violação à liberdade do voto de quem, por determinação constitucional, (art. 15, III, da CF), está impedido de votar, a reconhecer a atipicidade da conduta incriminada e a determinar o trancamento da ação penal:

“HABEAS CORPUS. AÇÃO PENAL. PEDIDO DE TRANCAMENTO. CORRUPÇÃO ELEITORAL. ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL. ELEITOR COM DIREITOS POLÍTICOS SUSPENSOS. FATO ATÍPICO. CONCESSÃO DA ORDEM. 

1.Nos termos do art. 299 do Código Eleitoral, que protege o livre exercício do voto, comete corrupção eleitoral aquele que dá, oferece, promete, solicita ou recebe, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita.

2.Assim, exige-se, para a configuração do ilícito penal, que o corruptor eleitoral passivo seja pessoa apta a votar.

3.Na espécie, foi comprovado que a pessoa beneficiada com a doação de um saco de cimento e com promessa de recompensa estava, à época dos fatos e das Eleições 2008, com os direitos políticos suspensos, em razão de condenação criminal transitada em julgado. Logo, não há falar em violação à liberdade do voto de quem, por determinação constitucional, (art. 15, III, da Constituição), está impedido de votar, motivo pelo qual a conduta descrita nos autos é atípica”  (HC nº 672/MG, Rel. Min. Felix Fischer).

Paradigmático aresto da Corte Superior Eleitoral sobre este tema, da relatoria do eminente Ministro Henrique Neves da Silva, está no Recurso em Habeas Corpus nº 45224, com origem em Juiz de Fora, também no Estado de Minas Gerais, cuja ementa é a seguinte:

“RECURSO EM HABEAS CORPUS. CORRUPÇÃO ELEITORAL. CÓDIGO ELEITORAL. ART. 299. DENÚNCIA. REQUISITOS.

1.A denúncia deve conter a exposição do fato criminoso em todas suas circunstâncias.

2.Na acusação da prática de corrupção eleitoral (Código Eleitoral, art. 299), a peça acusatória deve indicar qual ou quais eleitores teriam sido beneficiados ou aliciados, sem o que o direito de defesa fica comprometido.

3.Recurso em habeas corpus provido”

Isto é: “Essa identificação do corruptor passivo constitui-se numa circunstância própria do tipo penal. “A identificação do destinatário, de quem recebeu o numerário, é essencial para ter-se como válida imputação.”

Em seu voto, nesse mesmo RHC, o Ministro Marco Aurélio, foi claro, categórico e definitivo:

“O Ministério Público, ressalto mais uma vez esse aspecto, após o inquérito, não conseguiu apontar o destinatário. Se essa identificação não estiver no gênero circunstâncias da prática criminosa, tais como previstas no artigo 41 do Código de Processo Penal, fico a imaginar o que estaria compreendido na referência”.

E assim o concluiu: “O Ministério Público claudicou na arte de proceder.“

Nessa mesma linha, no HC nº 69358, o TSE uma vez mais afirmou que além do dolo específico de obter, dar voto ou prometer abstenção, para a configuração da corrupção eleitoral é necessário que a conduta seja dirigida a eleitores identificados ou identificáveis. Não havendo a determinação da pessoa, como condição de verificação da qualidade de eleitor, e de eleitor apto, o fato delitivo não se configura. No caso vertente, a ação penal foi ajuizada por suposta prática de corrupção eleitoral em razão de ter distribuído às vésperas do pleito, quando o réu era prefeito e candidato à reeleição, 36 mil itens referentes a cartões de saúde e a kits escolares. O Plenário, acompanhando o Ministro Dias Toffoli, trancou a ação penal pelo entendimento de que faltava tipicidade à conduta apontada na denúncia, por não haver identificação dos eleitores-alvo da corrupção:

“Habeas corpus. Crime de corrupção eleitoral. Eleições de 2004. Prefeito. Distribuição de cartões-saúde e itens escolares. Ausência. Individualização. Eleitor. Falta de demonstração. Dolo específico. Inexistência. Justa causa. Trancamento. Ação penal. Ordem concedida.

“1. Para a configuração do crime de corrupção eleitoral, além de ser necessária a ocorrência de dolo específico, qual seja, obter ou dar voto, conseguir ou prometer abstenção, é necessário que a conduta seja direcionada a eleitores identificados ou identificáveis e que o corruptor eleitoral passivo seja pessoa apta a votar. Precedentes.

“2. Na espécie, os supostos corruptores passivos nem mesmo seriam identificáveis, porquanto a distribuição de itens escolares e cartões-saúde – decorrentes de programas sociais custeados pela Prefeitura, então chefiada pelo ora impetrante – teria alcançado mais da metade da população, consoante se extrai dos termos da denúncia, o que afasta o dolo específico.”

Nesse mesmo sentido e Tribunal Superior:

HC n° 81219/RJ: “Da leitura da denúncia, depreende-se que a conduta descrita não se subsume, a teor do entendimento jurisprudencial, ao tipo do art. 299 do Código Eleitoral, uma vez ausente a identificação dos eleitores beneficiados”;

HC n° 572/PA: “na corrupção eleitoral, crime formal, o eleitor deve ser identificado ou identificável, inexigindo-se, todavia, o resultado pretendido pelo agente para sua consumação”;

AI nº 749719/RJ: “Para a configuração do crime de corrupção eleitoral, além de ser necessária a ocorrência de dolo específico, qual seja, obter ou dar voto, conseguir ou prometer abstenção, é necessário que a conduta seja direcionada a eleitores identificados ou identificáveis, e que o corruptor eleitoral passivo seja pessoa apta a votar”.

HC 672/MG: “Para a configuração do ilícito penal, que o corruptor eleitoral passivo seja pessoa apta a votar”.

Indeclinável, pois, em conformidade com a iterativa jurisprudência do TSE, que na peça inaugural da ação penal, oferecida após e com base em investigação produzida no inquérito, o MP identifique as pessoas cujos votos foram tentados ou comprados.

A propósito, interessante passagem do voto da Ministra Luciana Losso, no julgamento do RHC nº 45224, pelo TSE, vale ser transcrita:

“Se não está identificado o corruptor passivo, como podemos saber se ele poderia votar ou não? Haveria a compra de votos do art. 299 do Código Eleitoral? Tenho bastante dificuldade, realmente, de entender nesse sentido.”

Conclusivamente, em hipótese de tal falta de identificação do corruptor eleitoral passivo na denúncia, nas palavras do Ministro Marco Aurélio, o direito de defesa fica reduzido a terreno efêmero, pois a ação penal não pode transformar-se, anômala e ilegalmente, em um novo inquérito, e, nesta circunstância, o MPE claudica na arte de proceder.

Também no processo penal eleitoral, em obediência aos preceitos e garantias constitucionais do devido processo, da ampla defesa e do contraditório, deve ser assegurado ao réu, especialmente pelas mãos do MPE em razão da sua condição de fiscal da lei, a “plena ciência da completude das circunstâncias típicas do fato que lhe é imputado” (passagem do voto do Ministro Henrique Neves da Silva no RHC/TSE nº 45224).

A técnica da denúncia tem merecido reflexão no plano da dogmática constitucional. Denúncias que ignoram elementos essenciais sem os quais o fato é penalmente atípico não se coadunam com os postulados da Constituição e ofendem o princípio da dignidade da pessoa humana, exigindo prudência e rigor daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e também daqueles que podem decidir sobre o seu curso, como bem ponderado pelo Ministro Joaquim Barbosa no HC 84.409/SP, do STF.

Com a propositura da demanda penal, limita-se a liberdade e sujeita-se o réu ao constrangimento de um processo penal, sendo esta coação injusta se inadmissível o pretendido enquadramento pela objetiva ausência de elementos estruturais e essenciais ao fato denunciado, a exemplo do que ocorre neste caso. Se a pretensão punitiva não se apresenta como uma hipótese fundada e viável à luz da melhor dogmática, deve ceder diante do interesse relativo à liberdade individual.

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