Teoria da perda de uma chance – Perte d’une chance.

Interessante decisão do STJ, no AREsp 1.940.381-AL, merece ser reproduzida nas seguintes passagens do voto do Ministro Relator, Ribeiro Dantas (Quinta Turma, unânime, de 14/12/2021).

“Quando a acusação não produzir todas as provas possíveis e essenciais para a elucidação dos fatos, capazes de, em tese, levar à absolvição do réu ou confirmar a narrativa acusatória caso produzidas, a condenação será inviável, não podendo o magistrado condenar com fundamento nas provas remanescentes.

Originária do direito francês, a teoria da perda de uma chance (perte d’une chance) foi concebida no âmbito da responsabilidade civil para considerar indenizável a perda da oportunidade de se alcançar um resultado favorável, de ocorrência futura, incerta e dependente de fatores não submetidos ao controle total das partes envolvidas.

Segundo a teoria, a vítima de um ilícito civil tem direito à reparação quando esse ato lhe subtrair a chance de, exercendo suas competências, chegar a determinada situação que lhe seria vantajosa, mesmo na impossibilidade de garantir que tal situação se implementaria no futuro não fosse a prática do ato ilícito.

A transposição da perte d’une chance do direito civil para o processo penal é uma ideia original de ALEXANDRE MORAIS DA ROSA e FERNANDA MAMBRINI RUDOLFO.

Inconformados com a baixa qualidade de investigações policiais, os juristas argumentam que quando o Ministério Público se satisfaz em produzir o mínimo de prova possível – por exemplo, arrolando como testemunhas somente os policiais que prenderam o réu em flagrante -, é na prática tirada da defesa a possibilidade de questionar a denúncia.

Por isso, a acusação não pode deixar de realmente investigar o caso, transferindo à defesa o ônus de fazê-lo.

Ao contrário, a polícia e o Ministério Público devem buscar o que os autores chamam de comprovação externa do delito: a prova que, sem guardar relação de dependência com a narrativa montada pela instituição estatal, seja capaz de corroborá-la.

Nessa perspectiva, quando há outras provas em tese possíveis para auxiliar o esclarecimento dos fatos, é ônus do Parquet produzi-las, ou então justificar a inviabilidade de sua produção.

Diversos exemplos práticos ilustram a aplicabilidade da teoria. Para mencionar alguns:

  • se há testemunhas oculares do delito, a condenação não pode prescindir de sua prévia ouvida em juízo e fundamentar-se em testemunhos indiretos;
  • existindo câmeras de vigilância no local de um crime violento, a juntada da filmagem aos autos é necessária para aferir as reais condições em que ocorreu o delito e avaliar sua autoria ou excludentes de ilicitude;
  • sendo possível a consulta aos dados de geolocalização de aparelho celular do réu, a fim de verificar se estava na cena do crime, a produção da prova é necessária; e
  • havendo coleta de sêmen do agressor em um caso de estupro, deve ser realizado exame de DNA para confirmar sua identidade.

Às ponderações dos autores, acrescento que a prova imprescindível é aquela que, se fosse produzida, poderia em tese levar a um de dois resultados: (I) demonstrar a inocência do acusado ou (II) confirmar a procedência da acusação.

Faço essa diferenciação porque, se a prova diz respeito apenas à inocência do réu, mas sem guardar pertinência direta com a narrativa da denúncia (porquanto incapaz de confirmar seus fatos caso produzida), é ônus exclusivo da defesa apresentá-la. O melhor exemplo dessa hipótese é a prova relativa ao álibi do réu.

Imagine-se que, acusado de um crime violento, o demandado pretenda comprovar com documento (registro de frequência em seu ambiente de trabalho, exemplificativamente) que se encontrava em outro local no momento do crime. Nesse caso, a eventual produção da prova até poderá demonstrar sua inocência, mas como não guarda nenhuma relação com os fatos da denúncia em si, é ônus exclusivo da defesa produzi-la. É certo que, não logrando o acusado êxito na comprovação do álibi, ainda assim poderá ser absolvido, porque permanece incólume o ônus probatório do Ministério Público quanto aos fatos da imputação por ele formulada.

Diferentemente, se a prova se refere a um fato exposto na denúncia e, a depender do resultado de sua produção, pode em tese gerar a absolvição ou condenação do réu, o Parquet não pode dispensá-la, sob pena de incorrer na perda da chance probatória. Aqui se inserem, dentre muitas outras, as quatro situações que exemplifiquei acima: a ouvida de testemunhas oculares, a juntada do registro do crime em vídeo, os dados de geolocalização, o exame de DNA…

Essa distinção que proponho respeita a tradicional compreensão jurisprudencial de que, nos termos do art. 156 do CPP, a prova que interessa exclusivamente à defesa (como o álibi) deve ser por ela produzida, ao mesmo tempo em que impede a acusação de agir como fez o MP/AL nestes autos, apresentando somente um mínimo de provas e ignorando diversas outras linhas de extrema relevância.

Ficam excluídas dessa determinação, certamente, as provas irrelevantes e protelatórias, nos termos do art. 400, § 1º, do CPP, que nada acresceriam à apuração dos fatos.

O conceito de irrelevância, aqui, se atrela à formulação de ROSA e RUDOLFO: irrelevante é a prova incapaz de, mesmo em tese, conduzir à absolvição do réu (ou, acrescento eu, confirmar a acusação) caso produzida, como a ouvida testemunhas de caráter, apenas para trazer um exemplo.”

O aresto, em sua argumentação, menciona as seguintes doutrinas:

“O prejuízo causado pelo fato gerador [o ato ilícito] é gravado por um risco irredutível, porque não é possível testar retroativa e concretamente a questão da ausência do fato gerador. Não se pode, nem no melhor dos casos, apreciar a contribuição do fato gerador ao resultado desfavorável por um raciocínio probabilístico fundado em dados empíricos suscetíveis de uma análise estatística. É possível substituir a prova estatística de uma relação causal pela sua prova concreta? E qual deve ser, então, o impacto na mensuração do dano ou da indenização? É o que está em jogo na doutrina da perda de uma chance, que repousa em uma observação essencial: uma resposta negativa faz, injustamente, com que a vítima suporte todos os danos, porque isenta o autor de qualquer indenização, independentemente de sua contribuição efetiva para a ocorrência aleatória do dano” (La perte d’une chance et sa réparation. In: WERRO, Franz. Quelques questions fondamentales du droit de la responsabilité civile: actualités et perspectives. Berna: Stämpfli, 2002, p. 240; grifei).

“Nas hipóteses em que o Estado se omite e deixa de produzir provas que estavam ao seu alcance, julgando suficientes aqueles elementos que já estão à sua disposição, o acusado perde a chance – com a não produção (desistência, não requerimento, inviabilidade, ausência de produção no momento do fato etc.) -, de que a sua inocência seja afastada (ou não) de boa-fé. Ou seja, sua expectativa foi destruída” (ROSA, Alexandre Morais da; RUDOLFO, Fernanda Mambrini. A teoria da perda de uma chance probatória aplicada ao processo penal. Revista Brasileira de Direito, v. 13, n. 3, 2017, p. 462; grifei).

“A perda da chance de que todas as provas contra si sejam produzidas implica uma perda, sem possibilidade de produção pela parte contrária, lembrando-se, ainda, que o acusado nada deve provar (e, mesmo quando solicita tais provas, isso só é oportunizado em momento que já não permite a obtenção de êxito – as imagens já foram deletadas, as impressões digitais já desapareceram etc.). Dito de outra forma: o Estado não pode perder a oportunidade de produzir provas contra o acusado, tirando-lhe a chance de um resultado pautado na (in)certeza. Todas as provas possíveis se constituem como preceitos do devido processo substancial, já que a vida e a liberdade do sujeito estão em jogo. Enquanto na seara civil se fala em probabilidade de ocorrência do evento desejado (obtenção da vantagem ou não ocorrência do prejuízo, obstada pelo fato antijurídico), no processo penal não se pode falar em probabilidade. Para a condenação, exige-se a certeza, e não deve haver elemento algum que faça presumir a culpa de alguém. A culpa deve ser devidamente comprovada. Nos casos em que a prova estava ao alcance do Estado e não foi produzida, não se pode substituí-la por outros elementos, sob alegação da ausência de probabilidade de que aquela prova faltante fosse absolver o acusado. O Estado é garante dos direitos fundamentais e deve assegurar que os preceitos legais, constitucionais e convencionais sejam devidamente respeitados. Não pode, pois, eximir-se de sua responsabilidade, quando o ônus de afastar a inocência presumida lhe incumbe integralmente” (op. cit., p. 464; grifei).

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