Legítima Defesa e Ônus da Prova.

O sítio conjur.com.br noticia que o Tribunal Superior de Ohio, Estados Unidos, decidiu que a lei de 2019, que inverteu o ônus da prova para os promotores em casos em que o réu alega legítima defesa, deve ser aplicada em todos os julgamentos e com efeito retroativo.

Antes dessa lei, o ônus da prova da legítima defesa cabia ao réu. A Suprema Corte entendia constitucional tal atribuição probatória e o padrão então estabelecido era o da “preponderância”. O réu devia produzir provas mais fortes do que as provas da promotoria, ou convencer que as suas provas eram mais provavelmente verdadeiras do que falsas.

Com a recente decisão, inverteu-se o ônus: a obrigação probatória é da acusação, que deve demonstrar a inocorrência da legítima defesa além de qualquer dúvida razoável, de mostrar que não há outra explicação possível do que a apresentada pelas provas no julgamento. A alegação de legítima defesa é uma “defesa afirmativa” em que o réu tem o ônus de apresentar alguma prova, mas cabe à acusação provar, acima de qualquer dúvida razoável, que o caso não é de legítima defesa.

No Brasil, dá-se o mesmo.

Embora de aparente razoabilidade, não mais se sustenta o argumento de que, uma vez comprovado o fato típico em sua autoria e materialidade pela acusação, na esteira da teoria geral do crime e da função indiciária tradicionalmente reconhecida ao tipo penal, nasce um juízo provisório da sua ilicitude, que só não se tornará definitivo caso incida alguma causa excludente, cabendo à defesa, por uma imposição lógica e num sistema processual de paridade das partes, provar os fatos impeditivos ou modificativos, entre os quais está a legítima defesa.

À luz da teoria da prova e da Constituição Federal, no âmbito do devido processo penal não há repartição de ônus ou cargas probatórias.

Diferentemente do civil, no processo penal vigora o princípio constitucional da “presunção de inocência”, cujo corolário principal é o princípio “in dubio pro reo,” presunção que só sucumbe diante de prova cabal de ter o agente cometido um fato típico, ilícito e culpável, produzida pela acusação. Não tem o réu o ônus de provar nada. Pode silenciar, não falar uma só palavra sobre os fatos do processo. E o seu silêncio, de per si, não pode prejudicá-lo.[1]

À defesa, de acordo com a teoria da prova e do ditame constitucional da presunção de inocência, assiste o direito de produzir e contradizer hipóteses e provas, não o dever de produzi-las. A defesa não manifesta uma verdadeira pretensão, mas apenas pode se opor à pretensão punitiva do autor. Urge, destarte, tratar o problema do ônus da prova dentro de um sistema lógico, em termos genéricos e não casuisticamente.[2]

A respeito, passagem do voto do eminente Ministro Celso de Mello, no HC no 73.338-7/RS,10, é esclarecedora:

“O processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu – que jamais se presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença condenatória –, o processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão judicial e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe ao órgão acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado, que jamais necessita demonstrar a sua inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo Ministério Público.” [3]

De igual teor, da lavra do Min. Alexandre de Moraes, o julgado:

“A presunção de inocência condiciona toda condenação a uma atividade probatória produzida pela acusação e veda, taxativamente, a condenação, inexistindo as necessárias provas, devendo o Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio. Trata-se de um dos princípios basilares do Estado de Direito como garantia processual penal, visando à tutela da liberdade pessoal e possui quatro básicas funções: (a) limitação à atividade legislativa; (b) critério condicionador das interpretações das normas vigentes; (c) critério de tratamento extraprocessual como inocente em todos os seus aspectos; (d) obrigatoriedade de o ônus da prova da prática de um fato delituoso ser sempre do acusador. Há a necessidade de o Estado-acusador comprovar a culpabilidade do indivíduo mediante o contraditório, que é constitucionalmente presumido inocente, vedando-se o odioso afastamento de direitos e garantias individuais e a imposição de sanções sem o devido processo legal.”[4]

Portanto, quando o art. 156 do CPP enuncia que “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”, quer significar que ao acusador compete produzi-la, integralmente, conforme dicção do voto recém-reproduzido. E, por “prova da alegação” há de compreender-se a prova do “fato típico, ilícito e culpável” no qual se baseia a imputação deduzida pela denúncia ou a queixa, e em todas as suas circunstâncias (art. 41 do CPP). Sem os atributos da tipicidade e ilicitude do fato, falta justa causa e interesse de agir. Somente a acusação é que alega fatos, atribuindo-os ao réu. Alegação eventualmente deduzida pelo réu é juridicamente reputada como mera negação dos fatos imputados.

Assim, no atual estágio do processo penal brasileiro, ao órgão responsável pela acusação cabe o ônus de provar a autoria, a materialidade e, essencialmente, a ocorrência do injusto penal culpável, da tipicidade e ilicitude do fato e da culpabilidade do réu:

“Inserido na matriz constitucional dos direitos humanos, o processo penal é o espaço de atuação apropriada para o órgão de acusação demonstrar por modo robusto a autoria e a materialidade do delito. Órgão que não pode se esquivar da incumbência de fazer da instrução criminal a sua estratégica oportunidade de produzir material probatório substancialmente sólido em termos de comprovação da existência de fato típico e ilícito, além da culpabilidade do acusado. […] Incorrendo, assim, numa indisfarçável inversão do ônus da prova e, no extremo, na nulificação da máxima que operacionaliza o direito à presunção de não culpabilidade: in dubio pro reu. Preterição, portanto, de um direito constitucionalmente inscrito no âmbito de tutela da liberdade do indivíduo.”[5]

Os mais expressivos arestos do STJ asseveram:

“O órgão acusador tem a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar sua inocência. É característica inafastável do sistema processual penal acusatório o ônus da prova da acusação, sendo vedado, nessa linha de raciocínio, a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal.”[6]

O ônus da prova, na ação penal condenatória, “é todo da acusação, decorrência natural do princípio do favor rei, bem assim da presunção de inocência, sob a vertente da regra probatória, de maneira que o juiz deverá absolver quando não tenha prova suficiente de que o acusado cometeu o fato atribuído na exordial acusatória, bem como quando faltarem provas suficientes para afastar as excludentes de ilicitude e de culpabilidade.”[7]

“Ao réu compete negar os fatos a ele imputados, e não a prova de sua inocência, que é presumida.”[8]

Com efeito, tal como assentamos em nossas “Aulas de Legítima Defesa,”[9] se o réu em sua defesa pessoal ou técnica invoca a legítima defesa em circunstâncias mínimas de verossimilhança, cabe à acusação demonstrar que o fato, além de típico, é ilícito e culpável. Demonstrar a falta de agressão injusta, atual ou iminente, ao tempo da conduta empreendida pelo réu, ou que, apesar de havida, não tenha ele feito uso moderado do meio necessário. Se a acusação não o fizer, haverá dúvida, e, na dúvida, “in dubio pro reo.”

Na vigência de um Estado Democrático de Direito, a dúvida sobre a legítima defesa, sendo uma dúvida sobre a ilicitude da ação, importa em dúvida sobre o próprio crime e deve ensejar a absolvição. Não é uma questão de ônus, mas de dúvida sobre o caráter criminoso do próprio fato denunciado, que necessariamente conduz ao juízo absolutório.

A inversão do ônus da prova, nos termos literais do art. 156 do CPP, é página virada desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 e da vigência do princípio da presunção de inocência.

A tese de que a prova da legítima defesa incumbe ao acusado deveria fazer parte da história passada e não da história atual da jurisdição criminal brasileira, pois ainda são em elevado número e acentuada frequência decisões de juízes repetitivas de bordões inadmissíveis adiante da nossa realidade constitucional brasileira, com condenações embasadas na falta de prova da tese de legítima defesa pelo réu, como se fosse ônus seu, quando o Código de Processo Penal em vigor clara e expressamente determina que o juiz absolverá o réu quando houver fundada dúvida sobre a existência de uma excludente da ilicitude (art. 386, VI),18 pois, pela dicção legal, a dúvida razoável sobre a excludente milita em favor do acusado e fundamenta a absolvição criminal da mesma forma que a prova escorreita da legítima defesa.

Autores, juízes e tribunais devem adequar suas doutrinas, sentenças e julgados a essa perspectiva imperativa e inerente ao princípio constitucional do devido processo legal.

Observa Flávio Mirza:

“O Código de Processo Penal, notadamente arcaico e carente de boa sistemática, não trata da matéria com maior rigor. A doutrina, por sua vez, não enfoca a questão de modo coerente com os princípios constitucionais e processuais penais. Proclama a adoção dos mencionados princípios, porém, na hora de aplicá-los, tenta restringi-los ou acaba infirmando-os, ainda que sem se aperceber.”[10]

Conclusivamente, o entendimento de que cabe ao réu provar a legítima defesa decorre de um raciocínio ligado à teoria geral do delito, em que o tipo indicia a ilicitude até prova em contrário, em detrimento de uma reflexão sobre a teoria da prova, matéria processual penal que recebe influxos constitucionais proeminentes, como a presunção de inocência, a ampla defesa e o devido processo, que não permitem aplicação fracionada.

Por último, e em decorrência do exposto, mas apenas para explicitar, quando não houver certeza sobre qual dos contendores deu início ao fato, quem foi o agressor injusto no episódio de luta urbana, também por força do princípio in dubio pro reo, ambos devem ser absolvidos, não pela legítima defesa e sim pela dúvida sobre a ilicitude da conduta de cada um deles: “A impossibilidade de determinar quem teve a iniciativa da agressão, colocando o agredido em situação de legítima defesa, impõe a absolvição de ambos os réus”.[11]


[1] MIRZA, Flávio. Processo justo: o ônus da prova à luz dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo. Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro: UERJ, v. V, jan./jun. 2010, p. 540-559.

[2] JARDIM, Afrânio da Silva. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 212.

[3] STF, 2 Turma, DJ 19-12-1996 – Ata no 62/1996..

[4] AP 883, 1a T., rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 20-3-2018, DJe-092, de 14-5-2018.

[5] STF, HC 97701, 2ª Turma., rel. Min. Ayres Britto, j. 3-4-2012, DJe 186, de 21-9-2012..

[6] HC 27.684, 6ª Turma, rel. Min. Paulo Medina, j. 15-3-2007, DJ 9-4-2007, p. 267.

[7] REsp 1359446/SP, 6ª Turma, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 19-4-2016, DJe 28-4-2016.

[8] REsp 633.615/RS, 5ª Turma, rel. Min. Gilson Dipp, j. 28-9-2004, DJ 8-11-2004, p. 285. No mesmo sentido, STJ, AREsp 1080471/MG, 6ª Turma, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 17-5-2017.

[9] Otaviano Moraes. Aulas de legítima defesa . Edição do Kindle.

[10] Processo justo: o ônus da prova à luz dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo. Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro: UERJ, v. V, jan./jun. 2010, p. 540-559.

[11] Jurisprudência do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, no 97, p.238.

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