Ações penais em andamento e o acordo de não persecução.

Milhares de pessoas autoras de crimes receberiam a incidência concreta, ágil e eficaz da lei penal viabilizada pelos acordos, em proveito da higidez da ordem jurídica, das pessoas atingidas pelo delito, da sociedade e do Estado. 

Acordos de não persecução penal têm feito parte da rotina forense criminal desde o surgimento deste instituto da justiça consensuada no processo penal brasileiro.[1]  

Segundo dados publicados pelo MP dos Estados e da União, têm sido celebrados aos milhares, o que permite dizer que milhares de pessoas, que até então raramente se viam realizando serviços comunitários, efetuando prestações pecuniárias, ressarcindo vítimas e devolvendo produtos de crimes praticados, tornaram-se sujeitas a tais condutas devido à incidência concreta, ágil e eficaz da lei penal viabilizada pelos acordos, em proveito da higidez da ordem jurídica, das pessoas atingidas pelo delito, da sociedade e do Estado. 

Abreviadamente ANPP, consiste num ajuste entre o MP e o investigado, assistido por advogado e homologado pelo juiz, de “não persecução penal” durante o período de tempo de cumprimento de determinadas condições modeladas em lei e negociadas pelas partes, e de “extinção da punibilidade,” promovida pelo MP, depois de inteiramente cumpridas as condições, sem qualquer registro em antecedentes ou perda de primariedade. O investigado voluntariamente assume compromissos de prestação pecuniária, de serviços comunitários, de indenização à vítima e de entrega dos bens auferidos pelo crime, isolada ou cumulativamente, e o MP compromete-se a não promover a ação penal e a requer a extinção da punibilidade quando integralmente cumprido o ANPP.  

Discute-se sua aplicação aos processos criminais iniciados antes da entrada em vigor da lei que o instituiu e com denúncias recebidas.

Argumenta-se, de um lado, que a extinção da punibilidade que o acordo cumprido produz, assegurada pela norma jurídica do § 13 do art. 28 do CPP (“cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade”), tem a nota da retroatividade benigna assegurada na CF e no CP (respectivamente, arts. 5º, inc. XL, da CF, e 2º, § único, do CP), inclusive nos processos em andamento, enquanto, por outro, redargui-se que o propósito do ANPP é de poupar o agente do delito e o aparelho estatal do desgaste inerente à instauração do processo-crime.[2]

Fato é que o STJ, vencida inicial divergência interna, firmou convencimento que limita a retroatividade aos fatos anteriores à nova lei desde que a denúncia não tenha sido recebida, pelo reconhecimento do caráter pré-processual do instituto.[3]

Assim, a retroatividade da nova norma predominante processual, em que pese com reflexos penais, não pode ser ampla, devendo ser limitada ao recebimento da denúncia, isto é, à fase pré-processual da persecutio criminis.[4]

No STF, ainda sem pronunciamento do Plenário, há decisões neste mesmo sentido.

A Primeira Turma, por unanimidade, negou provimento a agravo regimental no HC 191.464/SC, de relatoria do Ministro Roberto Barroso, julgando inadmissível fazer-se incidir o ANPP quando já existente condenação, conquanto ela ainda esteja suscetível de impugnação. Da sua ementa são extraídos os seguintes fragmentos:

  • “O ANPP se esgota na etapa pré-processual, sobretudo porque a consequência da sua recusa, sua não homologação ou seu descumprimento é inaugurar a fase de oferecimento e de recebimento da denúncia.”
  • “O recebimento da denúncia encerra a etapa pré-processual, devendo ser considerados válidos os atos praticados em conformidade com a lei então vigente.”
  • “A retroatividade penal benéfica incide para permitir que o ANPP seja viabilizado a fatos anteriores à Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.”
  • “Na hipótese concreta, ao tempo da entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, havia sentença penal condenatória e sua confirmação em sede recursal, o que inviabiliza restaurar fase da persecução penal já encerrada para admitir-se o ANPP.”  

Também por sua Primeira Turma e sem dissonância, no HC 190855/PE, relatado pela Ministra Rosa Weber, decidiu que a retroatividade atinge casos anteriores à entrada em vigor da regra do art. 28-A, desde que não recebida a denúncia, com expressa referência aos julgados do HC 195.327/PR, relator Ministro Alexandre de Moraes, DJe 25.02.2021; HC 197.369/SP, relator Ministro Dias Toffoli, DJe 12.02.2021; e do RE 1.244.660/RS, relator Ministro Nunes Marques, DJe 10.02.2021.

Diante desta realidade operacional do instituto, discussão sobre a retroatividade e aplicação aos processos em curso, hoje, é acadêmica.

Contudo, este cenário pode ser revertido. Pende de julgamento pelo Pleno do STF, a seguinte tese suscitada pelo Ministro Gilmar Mendes no âmbito da Segunda Turma, ao conceder ordem de habeas corpus de suspensão do processo e de eventual execução da pena até a manifestação motivada do órgão acusatório sobre a viabilidade de proposta de ANPP:

“É cabível o acordo de não persecução penal em casos de processos em andamento (ainda não transitados em julgado) quando da entrada em vigência da Lei 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento. Ao órgão acusatório cabe manifestar-se motivadamente sobre a viabilidade de proposta, conforme os requisitos previstos na legislação, passível de controle, nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP.[5] 

Apesar de arguida em data anterior às decisões da Ministra Rosa Weber e daquelas que especificou em seu voto, a tese é consistente e atraiu ao processo, na condição de amicus curiae, o MPSP e do MPRS, o Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores e da Defensoria Pública da União, a Associação Nacional da Advocacia Criminal e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que poderão apresentar memoriais e proferir sustentações orais na sessão de julgamento.

Temos que a retroatividade é imperativa, verdadeira garantia constitucional da qual não se deve descurar, pois o comandos normativos que impedem a imposição de pena ao investigado e asseguram a extinção da sua punibilidade depois de cumprir as condições assumidas, conferem matiz penal e predominam o conteúdo normativo do instituto mais benigno ao status libertatis, não devendo encontrar óbice no recebimento da denúncia.

Embora formalmente previsto no CPP, o ANPP reveste-se de conteúdo material “no que tange às suas consequências, apresentando-se como verdadeira norma de garantia e, assim, retroativa; em outros termos, é norma que interfere diretamente na pretensão punitiva do Estado e não simples norma reguladora de procedimento.”[6] As normas penais que consagram medidas despenalizadoras são benéficas e necessariamente impulsionadas, quanto a sua aplicabilidade, pelo princípio constitucional que impõe a lex mitior uma incontestável carga de retroatividade virtual e, também, de incidência imediata.[7]

Observe-se a redação do caput e do § 13 do art. 28-A  do CPP: “Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente […] § 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.”  

Devido aos reflexos sobre o status libertatis, deste conjunto normativo, em nível de comandos, devemos extrair e conferir maior significado ao comando de que o investigado não sofrerá pena criminal, ordinariamente reservada pelo preceito secundário do tipo principal que sua conduta tenha composto, e que a punibilidade por esta prática típica será extinta, caso cumpra as condições que voluntariamente assumiu.

O critério que deve orientar a aferição da natureza penal está no exame do efeito jurídico punitivo que a norma é apta a produzir. Penal é a norma que fixa, amplia, diminui, exclui ou extingue a punição. Quando acompanhada, na mesma oração legal, de norma processual, formando norma dita híbrida, o predomínio jurídico dos comandos que veicule não pode ser outro senão dos comandos penais, até porque o processo é instrumento da matéria penal, sob pena, venia concessa, de pecado dogmático: “Em casos de leis processuais de conteúdo material, aplica-se a regra intertemporal de direito penal material.”[8] Confusão interpretativa, que resulte em equivocada compreensão sobre a verdadeira natureza e proeminência da norma, pode colocar em risco direitos fundamentais.

Não bastasse, e muito bem observado pelo Ministro Gilmar Mendes no voto em que suscitou a tese,  o instituto é denominado “acordo de não persecução penal” e não “acordo de não oferecimento da denúncia,” podendo e devendo incidir mesmo depois do recebimento da denúncia,[9] pois a persecução não se exaure com o início do processo. Envolve toda a atuação do Estado até a liberação do poder punitivo com o trânsito em julgado da condenação. O próprio MPF, pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, órgão incumbido da coordenação, integração e revisão do exercício funcional dos membros da Instituição na área criminal, firmou posição favorável à retroatividade ampla, conforme Enunciado 98.

Assim, ainda que à custa de elevada carga de trabalho revisional de processos, elaboração de documentos de proposituras ou de fundamentação de recusas de ANPPs, designações e pautas de audiências com os interessados e de homologações judiciais, aumento no volume dos serviços das varas de execução criminal etc., que certamente provocaria nos foros e tribunais do país, a jurisprudência, na linha da doutrina majoritária, deveria proclamar a retroatividade ampla do instituto do ANPP, até porque, e sob o ângulo dos reflexos da retroatividade ampla da norma penal mais benigna, não seriam apenas milhares, mas centenas de milhares, ou bem mais expressiva quantidade de pessoas que cumpririam prestações pecuniárias, prestariam serviços comunitários ou outras medidas em prol da sociedade das quais até hoje se viram protegidas de submissão pelo emperramento da Justiça Criminal.

Dar-se-ia maior visibilidade e prestígio a centenas de milhares de pessoas vitimadas, fosse pela recuperação de bens ou por indenizações. O Judiciário tornaria passada boa parte da realidade atual que não otimiza recursos públicos, gera impunidade e descrédito social, caracterizada pelo lerdo ritmo dos processos, que se arrastam ao longo de anos pelos foros do país, quando não totalmente estagnados, sem andamento qualquer, tal qual se deu durante a fase mais grave da pandemia nos processos físicos, de pautas de audiências de instrução e julgamento superlotadas ou não implementadas, de verdadeira massa de mandados pendentes de cumprimento, com o grave risco de prescrição. E o Estado, arrecadando bens hoje em mãos de terceiros, obtidos ou produtos dos crimes, não só diminuiria a despesa, também teria ganhos com o sistema penal, não fosse suficiente, como principal efeito deste processo retroativo, tornar o sistema socialmente mais confiável e operacionalmente mais eficiente.

A propósito, durante as discussões que resultaram no Enunciado 98, concluiu-se que eventuais “tumultos processuais‘’ infligidos momentaneamente ao Estado-Juiz e ao Estado-Acusação para viabilizar o oferecimento do ANPP no âmbito das ações penais em curso, seriam suportáveis e até preferíveis, frente aos diversos benefícios que a celebração de acordos de não repercussão representam a médio e longo prazo.”[10]

Conclusivamente, a retroatividade deve ser admitida aos processos por fatos anteriores e com denúncias recebidas. Única e instransponível barreira é o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, tendo em vista que encerra a persecução e dá início à execução da pena,[11] havendo, assim, uma incompatibilidade ontológica das situações de condenado com o trânsito em julgado e de proposta de acordo de não persecução penal.[12] De resto, uma vez que a condenação somente adquire força executiva e consagra maus antecedentes com o seu trânsito em julgado, até que tal se processe deve haver espaço ao ANPP em homenagem ao direito fundamental da retroatividade da norma penal despenalizadora.


[1] Instituído pela Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, depois consolidado pela Lei 13.964/19 – Pacote Anticrime.

[2] STJ, AgRg no HC 628.647/SC, Sexta Turma, relatora para o acórdão a Ministra Laurita Vaz, DJe 07/06/2021.

[3] AgRg no HC 629.225/SC, Quinta Turma, relator Ministro Felix Fischer, julgado em 23/2/2021, DJe 1º/3/2021.

[4] STJ: EDcl no AgRg no AREsp 1841068/DF, Quinta Turma, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, julgamento em 26/10/2021 e DJe 03/11/2021; AgRg no AREsp 1923546/SP, Quinta Turma, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julgamento em05/10/2021 e DJe 13/10/2021; AgRg no HC 644.042/SC, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quinta Turma, julgado em 25/5/2021, DJe 28/5/2021). AgRg no AREsp 1909408/SC, Quinta Turma, relator Ministro Ribeiro Dantas, julgamento 05/10/2021 e DJe 13/10/2021; AgRg no HC 680533/SC, Quinta Turma, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julgamento em 05/10/2021 e DJe 13/10/2021;AgRg no REsp 1907555/PR, Quinta Turma, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, julgamento em 28/09/2021 e DJe 04/10/2021.

[5] HC 185.913/DF.

[6] DE BEM, Leonardo; MARTINELLI, João Paulo. O limite temporal da retroatividade do acordo de não persecução penal. Acordo de não persecução penal. D’Plácido, 2020. p. 126.

[7] Nesse sentido, STF, Plenário, Inquérito 1.055 QO, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 24.5.1996.

[8] BADARÓ, Gustavo H. Processo penal . 5 ed. RT, 2017, p. 105; PELUSO, Vinicius T. Retroatividade penal benéfica. Saraiva, 2013. p. 160-161.

[9] A exemplo da transação penal, ex vi do art. 79 da Lei nº 9.099/95, e da suspensão condicional do processo quando houver desclassificação ou procedência parcial da pretensão punitiva na sentença (Súmula 337, STJ).

[10] Proc. MPF 1.00.000.013381/2020-93, Rel. Luiza Cristina Frischeisen, 31.8.2020.

[11] HC 185.913/DF.

[12] DEZEN, Guilherme Madeira; SOUZA, Luciano Anderson.  Comentários ao pacote anticrime: Lei 13.964/2019.São Paulo, Revista dos Tribunais, 2020, p. 112. No mesmo sentido, DE-LORENZI, Felipe. Justiça Negociada e Fundamentos do Direito Penal. Tese de Doutorado, PUCRS, 2020. p. 196.

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