Devido acesso aos documentos em procedimento investigatório da polícia judiciária ou do MP.

CARLOS OTAVIANO BRENNER DE MORAES FILHO, advogado.

I – A Súmula Vinculante 14 do STF.

“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”

É o que dispõe a Súmula Vinculante 14, do STF, julgada na Sessão Plenária de 2 de fevereiro de 2009 (PSV 1) e publicada no DJE 59, de 27 de março do mesmo ano.

Embora não se trate de uma enunciação legal, com fonte no Poder Legislativo, a súmula vinculante do STF possui a força inerente às decisões judiciais, tem como substrato questão constitucional e visa solucionar controvérsia e assentar entendimento sobre determinada matéria, homogeneizando pronunciamentos de juízes e tribunais a respeito, em prol da segurança jurídica.

A desobediência à súmula permite reclamação da parte interessada ao Supremo, cuja competência para fixá-la é exclusiva, como guardião da Constituição Federal. Incluído no texto original da Carta pela Emenda 45 de 2004, o art. 103-A dispõe: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.”

II – Direito assegurado pela Súmula Vinculante 14 do STF.

A Súmula Vinculante 14 assegura ao defensor o acesso amplo aos elementos de prova que já documentados, o que significa dizer, àqueles que já foram obtidos e concluídos. Caso ainda pendentes de documentação, cabe à autoridade providenciar em tempo oportuno.

III – Amplo acesso.

O exercício do direito de acesso deve ser à integralidade do expediente investigatório, única interpretação compatível com a amplitude assegurada à defesa pela Súmula 14, razão pela qual é vedado à autoridade encarregada do procedimento, inclusive o Ministério Público nas suas investigações próprias, selecionar,[1] eleger documentos para disponibilização à defesa[2], sob pena de tornar-se inócuo o enunciado sumulado e, especialmente, agredida a garantia constitucional da ampla defesa: “Tendo em vista a expressão “acesso amplo”, deve-se facultar à defesa o conhecimento da integralidade dos elementos resultantes de diligências, documentados no procedimento investigatório, permitindo, inclusive, a obtenção de cópia das peças produzidas.”[3]

IV – Amplo acesso às diligências documentadas.

Diligência documentada, é aquela que já foi realizada, que teve encerramento e foi materializada em documento juntado aos autos do expediente investigatório. Não estão abrigadas pela Súmula, e ao respectivo acesso pelo defensor, as diligências em andamento, restrição que se justifica, na dicção do STF durante o julgamento da própria Súmula, “para que não se comprometa o sucesso das providências investigatórias em curso de execução.”[4] O sigilo, portanto, refere-se tão somente às diligências, evitando a frustração das providências impostas.[5] Salienta-se, porém, que “não é qualquer diligência em curso que tem o potencial de impedir a defesa de conhecê-la. O acesso só pode ser negado se ficar demonstrado que, tomando conhecimento dela, o requerente possa vir a frustrar o seu resultado útil.”[6]

Por sua vez, diligência em andamento, é aquela que ainda não foi concluída, e por isso ainda não documentada. Não se confunde com diligência exaurida pendente de análise, caso em que deve a autoridade, o quanto antes, documentá-la, sem prejuízo, no entanto, da imediata juntada aos autos do material que tenha sido objeto da diligência para seu conhecimento pelo defensor.

No exemplo de LUCIANO FELDENS[7], se a busca e apreensão de objetos já foi concluída, “O material objeto da diligência deve ser imediatamente incorporado aos autos, e sua análise policial (relatório e etc.) tão logo concluída.” Isso porque, acrescenta, “Compreensão diversa atribuiria à Autoridade Policial o domínio exclusivo sobre o prazo de análise documental, bem como sobre seu encarte aos autos, passando ela própria, soberanamente, a deliberar sobre a efetivação de uma garantia constitucional (art. 5º, LIV e LV da CF). Ou seja, teria a Autoridade Policial o anômalo poder de determinar se, quando e em quais circunstâncias a defesa teria o direito de acessar elementos probatórios já integrados – ou que já deveriam estar integrados – aos autos.”

V – Tempo do exercício ao amplo acesso.

Considerando que a finalidade da Súmula 14 é de assegurar a ampla defesa, o momento temporal de acesso aos autos pelo defensor só se pode compreendê-lo anterior ao depoimento ou ao interrogatório da pessoa assistida  para que possa tomar ciência da imputação e das provas já produzidas contra seu cliente.[8] Sem o conhecimento prévio das provas produzidas, o depoente ou interrogado, e o seu advogado, caminharão na escuridão, sem a luz do “devido” procedimento sumulado. Essa é a interpretação que se deve ser conferida à súmula vinculante 14, pois o direito à ampla defesa não pode ficar restrito, essencialmente, ao direito à assistência de advogado (art. 5º, LXIII, CF).[9]

VI – Outras disposições normativas corretas ao enunciado sumulado.

A Resolução 058/2009 do Conselho da Justiça Federal, no art. 3º, § 4º, dispõe:  “É garantido ao investigado, ao réu e aos defensores acesso a todo material probatório já produzido na investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento, sob pena de sua frustração, situação em que a consulta de que trata o parágrafo anterior poderá ser indeferida pela autoridade judiciária competente, voltando a ser franqueada assim que concluídas as diligências determinadas.”  

O Estatuto da Advocacia, dentre os direitos assegurados ao advogado, no inc. XIII do art. 7º, outorga a faculdade de “examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estiverem sujeitos a sigilo ou segredo de justiça, assegurada a obtenção de cópias, com possibilidade de tomar apontamentos.”  E, no inc. XIV, a faculdade de “examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital.” Neste caso, a autoridade competente poderá delimitar o acesso aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências.[10] 

A Lei 13.964/19, que modificou disposições penais e processuais na legislação nacional, no inc. XV do art. 3º-B determina ao juiz das garantias, como responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais, assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento.

A Lei 13.869/2019, que dispõe sobre o abuso de poder, no art. 32 tipifica e comina com pena de detenção de 6 meses a 2 anos, e multa, a conduta de negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível.


[1] “O acesso ocorre consideradas as peças constantes dos autos, independentemente de prévia indicação do Ministério Público“ – STF, Reclamação 31.213 MC, Relator Ministro. MARCO AURÉLIO, j. 20/08/2018.

[2] “O procedimento investigatório instaurado pelo Ministério Público deverá conter todas as peças, termos de declarações ou depoimentos, laudos periciais e demais subsídios probatórios coligidos no curso da investigação, não podendo o Parquet sonegar, selecionar ou deixar de juntar, aos autos, quaisquer desses elementos de informação, cujo conteúdo, por referir-se ao objeto da apuração penal, deve ser tornado acessível tanto à pessoa sob investigação quanto ao seu Advogado”  – STF, HC 89837, Relator Ministro CELSO DE MELLO, j. 20/10/2009.

[3] STF, Reclamação 31.213 MC, Relator Ministro. MARCO AURÉLIO, j. 20/08/2018.

[4] STF – PSV 1, Relator Ministro MENEZES DIREITO, j. 02/02/2009.

[5] STF – Reclamação 31.213 MC, Relator Ministro. MARCO AURÉLIO, j. 20/08/2018.

[6] STF – Reclamação 43.007, Relator Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, j. 16/11/2020.

[7] FELDENS, Luciano. O Direito de Defesa: a tutela jurídica da liberdade na perspectiva da defesa penal efetiva. Livraria do Advogado. 2021. 

[8]ADPF 444, Relator Ministro GILMAR MENDES, j. 14/06/2018.

[9]ADPF 444, Relator Ministro GILMAR MENDES, j. 14/06/2018.

[10] Art. 7º, § 11, do Estatuto.  

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