Homicídio privilegiado.

I – A Exposição de Motivos do CP.

No item 39, a Exposição de Motivos do CP de 1940 consigna:

“Ao lado do homicídio com pena especialmente agravada, cuida o projeto do homicídio com penal especialmente atenuada, isto é, o homicídio praticado por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de emoção violenta, logo em seguida a injusta provocação da vítima. Por motivo de relevante valor social ou moral, o projeto entende significar o motivo que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática, como, por exemplo, a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima (caso de homicídio eutanásico), a indignação de um traidor da pátria, etc.”

Para Custódio Da Silveira: “bastaria falar-se de motivo moral, uma vez que a ética é individual e social ao mesmo tempo: a expressão social é pleonástica e equívoca.”[1]

Já no texto e Parte Especial do CP, o § 1º do art. 121, sob a rubrica “Caso de diminuição da pena”, dispõe: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”.

Esta causa de diminuição da pena recebe da doutrina a denominação de “homicídio privilegiado”[2], devido ao benefício que produz ao status liberatis, de apenamento menos severo do que aquele cominado ao tipo básico do delito. As classes que a compõem, uma referente aos motivos determinantes e outra relativa ao estado emocional do agente, são pessoais e subjetivas, não se comunicam ao coautor e admitem o dolo eventual[3].

II – Homicídio por relevante valor social.

A natureza social e a relevância do motivo determinante são positivamente avaliadas pelo legislador. Não a ponto de darem o homicídio por justificado, mas de ensejarem ao autor uma diminuição da pena, considerada, no dizer da Exposição de Motivos do CP, a dose de aprovação e a menor censura da moral prática.

O motivo social corresponde a um valor ou interesse compartilhado coletivamente, envolvendo intuito e proveito para todos os indivíduos. A lei o exige relevante, que tenha importância, apreço, representatividade e significado para a sociedade. Relevante sob o ponto de vista da coletividade e não unicamente para o agente, apesar da natureza subjetiva da circunstância.

Assim, quando o indivíduo, sinceramente, age na defesa de um valor social relevante, sua conduta, ainda que lhe represente um proveito como membro, atende mais ao interesse da sociedade. É um agir de menor periculosidade e desajuste, comparativamente a outros motivos determinantes, como a futilidade e a torpeza.

Na doutrina, são comuns as exemplificações envolvendo a morte de um traidor da pátria, utilizado pela própria Exposição de Motivos do CP, ou de perigoso bandido em prol da paz e segurança da comunidade que está sob seu jugo.

Na época em que era foragido, matar Pablo Escobar, o maior traficante internacional, procurado pela polícia e exército colombianos com a ajuda do departamento norte-americano de combate às drogas, em virtude dos seus milhares e hediondos assassinatos, de mão própria ou por seus sicários, seguramente também se constituiria numa hipótese privilegiadora do delito, pela relevância do valor determinante à sociedade colombiana, atormentada e amedrontada por suas barbáries, se o motivo de eliminá-lo fosse verdadeiramente o de dar cabo ao grande mal que a sua existência representava à sociedade e à ordem pública naquele país, ainda que eventualmente agregada de alguma vaidade pela repercussão mundial do homicídio e notoriedade do autor.

Da mesma forma, por relevante valor social, o assassinato de Osama bem Laden, responsável pelo mais contundente ataque terrorista de nossos tempos, se cometido por um cidadão motivado na causa social de eliminar o líder e fonte permanecente e inesgotável de ideação e execução de outros gravíssimos atos de terror enquanto se mantivesse vivo.

Também não excluiríamos a possibilidade de igual enquadramento típico a quem matasse um temível e contumaz abigeatário[4], assim identificado pela violência cruel empreendida nas pessoas proprietárias ou cuidadoras dos animais que subtraia durante as noites e madrugadas, para sossego, segurança e incolumidade da comunidade rural, assustada e acovardada pelos rotineiros eventos sem punição e desprotegida de um tempestivo atendimento dos órgãos oficiais de proteção devido à distância e o tempo necessário para deslocamentos entre a cidade e o campo.

Ainda que de ocorrência incomum, encontradiço mais nos livros de doutrina do que nos julgados dos tribunais, o homicídio por relevante valor social é uma possibilidade de motivação homicida reconhecida pela lei penal brasileira, que enseja ao autor a diminuição da pena ordinariamente cominada.

III – Homicídio por relevante valor moral.

Valor moral, diferente do social, é um interesse que está mais próximo do indivíduo do que da sociedade.

Diz respeito mais ao agente do que ao grupo social. Envolve sentimento pessoal, que a sociedade o reconhece relevante por sua mostra de nobreza, altruísmo, lealdade, fidelidade, piedade, compaixão etc.

Extraído dos princípios éticos da sociedade, o valor moral  é reconhecido pela consciência ética de um povo, possuindo variações de conteúdo, de relevância e de momento histórico conforme a cultura, a educação, a tradição e até mesmo o sentimento religioso de um específico núcleo social.

Servem de exemplos de homicídio por relevante valor moral:

  • Ao chegar à sua casa, “A” depara-se com sua filha chorando copiosamente. Pergunta-lhe o motivo da tristeza, vindo a saber que fora ela recentemente estuprada por “B”. Pede então a “C”, seu amigo, que mate o estuprador, no que é atendido[5].
  • Antigo filme de 1996, com excelente elenco, intitulado Tempo de Matar, versa sofre o assassinato de dois homens brancos pelo pai da menina negra de dez anos que estupraram. O crime ocorre dentro do tribunal da cidade de Canton, estado norte-americano do Mississipi, diante de diversas testemunhas.
  • Filho que mata o pai, por manter a amante na casa em que vivia a mulher e a família[6].
  • A morte de um cadete em Alpercatal, Chile, que, em virtude da colisão de trem, aprisionado entre os destroços e vendo avançar em sua direção as chamas e já sofrendo as primeiras queimaduras, sem chance alguma de ser libertado, foi morto com um disparo por um de seus chefes, movido pela compaixão ante os seus pedidos insistentes e pungentes sofrimento.
  • Homicídio do traficante que distribui drogas num colégio, sem qualquer ação eficaz da polícia para contê-lo, levando um pai desesperado pelo vício que impregna seu filho a matar o criminoso.”[7]

Ao consignar o motivo moral como hipótese legal de homicídio privilegiado, o CP permite discussão sobre a inclusão da eutanásia nessa sua disposição, talvez a principal e a mais compreensível hipótese de valor moral como motivo determinante do homicídio, porque, se de um lado há a indisponibilidade da vida, de outro há, e à luz da Constituição, os princípios da dignidade da pessoa humana e da liberdade compreendem o direito à vida e o direito a uma morte digna.

O homicídio piedoso, pode ser por ação ou omissão.

A eutanásia, designação usual da modalidade ativa, implica na ação de matar. Há um fazer para abreviar a vida da pessoa portadora de doença incurável e terminal, a provocação rápida da morte por uma ação intencional.

A ortotanásia, que é a eutanásia por omissão, que não provoca a morte do paciente, tal qual a eutanásia. O médico deixa que o processo da morte já iniciado tenha seu curso natural. Não o prolonga artificialmente (distanásia) nem o abrevia.

Apesar do dever de oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis, não tem o médico o dever de empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, se assim consentido pelo próprio ou, na sua impossibilidade, pelo representante legal.

A ortotanásia é um procedimento expressamente admitido[8] pelo Código de Ética Médica e a eutanásia expressamente proibida[9].  Se o médico não causa a morte do paciente, não há nexo de causalidade, razão pela qual a ortotanásia é fato penalmente atípico.[10]

No homicídio privilegiado pelo motivo determinante, em que pese deva ser este “relevante”, ainda assim a motivação da conduta pode ensejar uma avaliação de maior ou menor significância social ou moral na situação em concreto, que determine uma maior ou menor redução da pena[11].

IV – Homicídio sobre o domínio de violenta emoção.

Prevê o CP, no mesmo § 1º do art. 121, outra figura privilegiadora do delito, o homicídio cometido sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, doutrinariamente designado homicídio emocional.

Trata-se de uma figura penal distinta em natureza (privilegiadora) e efeitos da circunstância prevista na parte final da alínea “c”, inc. III, do art. 65 do CP (atenuante). Vejamos o seguinte quadro comparativo:

Art. 121, § 1º.Art. 65, III, “c”.
Causa especial de diminuição da penaCircunstância atenuante da pena
Injusta provocação da vítimaAto injusto da vítima
Domínio da violenta emoçãoInfluência de violenta emoção
Reação logo em seguida à injusta provocaçãoApós ao ato injusto

Três são os elementos do homicídio emocional:

1) Injusta provocação.

Injusta provocação, é a indevida, injustificável, destituída de motivação razoável, antijurídica incitação da sensibilidade moral do agente, dolosa ou culposa, por ação ou omissão. Feita através de gozações, zombarias, deboches, bullying, xingamentos, vias de fato, perseguições etc., até mesmo putativa[12], de modo a causar justa indignação, inclusive em terceira pessoa, vinculada ao provocado, que também se sinta atingida pela hostilidade, devendo ser apreciada objetivamente e causar a violenta emoção, sem descurar-se, porém, nesta avaliação, das condições ou qualidades pessoais do provocado. É a provocação que o direito não permite, razão pela qual não alcança o agente que mata a vítima que se recusa a reatar uma relação amorosa, por exemplo.

2) Domínio de violenta emoção.

A injusta provocação da vítima gera uma perturbação profunda e absorvente da afetividade e sentimentos. Ainda que transitória e fugaz, no seu pico, quando a ação homicida tem vez, o self-control está praticamente anulado.

Os motivos inibitórios se tornam inócuos freios, de tão intensa a perturbação do psiquismo, das alterações somáticas[13] e dos fenômenos neurovegetativos e motores”, já tendo sido comparado o homem sob o influxo da emoção violenta a um carro tirado por bons cavalos, mas tendo à boléia um cocheiro bêbado[14].

O agente fica realmente à mercê, dominado pela violenta emoção. Pode ocorrer, por exemplo, com o pai que, logo após saber que seu filho foi vítima de brutal agressão física, sofre uma súbita explosão dos sentimentos que domina intensamente seu autocontrole, sai ao encalço do agressor e contra ele dispara repetidos tiros de revólver.[15]

Nucci narra caso em que o privilégio da violenta emoção foi reconhecido pelo júri em favor de um rapaz foi passeava com a namorada. Um grupo de rapazes mexeu com a menina e humilhou e surrou o rapaz franzino na presença da namorada. Completamente desnorteado, emocionalmente dominado por fenômenos neurovegetativo e motores, foi até a sua casa, que ficava próxima, pegou uma faca, voltou e agrediu letalmente um dos seus atacantes.[16]

A simples perturbação emocional não corresponde à figura penal, pois compreendida como efeito normal das situações de conflito.

3) Reação logo em seguida.

A morte do provocador ocorre logo após à provocação, sem intermezzo, e em plena vigência deste estado emocional absorvente.

Já se reconheceu o privilégio em favor do agente que praticou o homicídio em razão de ofensas dirigidas contra a sua mãe, mesmo tendo a reação à injusta provocação ocorrido após certo lapso temporal, mas comprovado que o acusado assim reagiu ainda sob o domínio da violenta emoção.[17]

V – Redução da pena.

Na disciplina do homicídio emocional, adota o CP a teoria subjetiva, que fundamenta o privilégio no aspecto psicológico do fato, determinante de uma menor culpabilidade do agente, que se reflete na dosimetria da pena.

A redução da pena, de um sexto a um terço, é medida obrigatória à luz do art. 492, inc. I, alínea “c”, do CPP, que determina ao juiz, no caso de condenação, impor os aumentos ou diminuições da pena em atenção às causas admitidas pelo júri.

Sendo o homicídio doloso matéria da competência constitucional do tribunal popular, acolhida a tese da modalidade privilegiada do delito o magistrado tem o dever de reduzir a pena dentro dos limites fixados pelo § 1º do art. 121 do CP. Não possui a faculdade para aplicar ou deixar de aplicar a minorante. Seu poder de decisão é limitado à fixação do quantum da redução. E deve fazê-lo fundamentadamente, caso não aplique a redução máxima de 1/3 da pena.

Antes da reforma processual penal de 2008, que inovou a regra hoje inserta na alínea “c”, do inc. III, do art. 492 do CPP, com base no enunciado da Súmula 162 do STF, de absoluta nulidade do julgamento do júri quando os quesitos da defesa não precedem aos das circunstâncias agravantes, já se reconhecia essa obrigatoriedade, pois, irrazoável seria se, acolhido pelo júri o privilégio, pudesse o juiz ignorar o veredicto soberano ao não promover a correspondente diminuição da pena.

Euclides Custódio da Silveira advertia: “Ora, se os jurados afirmam o quesito relativo à causa de diminuição da pena, que é obrigatório quando requerido pela defesa, iniludivelmente sacrificado estaria o princípio constitucional se o juiz Presidente do Tribunal do Júri pudesse desatendê-lo ou recusar-lhe acolhimento, que a tanto equivaleria não diminuir a pena prevista na cabeça do artigo, de um sexto a um terço”[18].

Sobre o critério de redução, entendemos que não pode ser o da maior ou menor intensidade da emoção, pois o privilégio, sob pena de ser confundido com a atenuante do art. 61, inc. III, letra “c” (última figura), do CP, exige “domínio” da violenta emoção, emoção absorvente, o que não permite graduação. Parece-nos que a melhor referência para o cálculo seja o grau de reprovação atribuído à provocação. Acórdãos do STF e do STJ seguem esse critério, muito embora também o mesclem com a intensidade da emoção:

“[…] A diminuição da pena em virtude do reconhecimento do homicídio privilegiado nada tem a ver com a redução operada tendo em vista circunstâncias judiciais favoráveis. O Juiz, ao aplicar a causa de diminuição do § 1º do art. 121 do Código Penal, valorou a intensidade da emoção e o grau de provocação da vítima, concluindo, fundamentadamente, pela diminuição da pena em apenas um sexto.”[19]

“Segundo precedente desta Corte Superior de Justiça, uma vez reconhecido o privilégio pelo Tribunal do Júri, compete ao Juiz Presidente, dentro do seu livre convencimento, aplicar, fundamentadamente, a redução que pode variar conforme a relevância do motivo de valor moral ou social, ou a intensidade da emoção do réu, bem como o grau de provocação da vítima” (HC n.º 73.219/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 14-8-2007, DJ 10-9-2007). Nesse sentido, também o seguinte julgado: HC n.º 100.842/MS, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 4-5-2010, DJe 24-5-2010, p. 9).”[20]

VI – Homicídio privilegiado-qualificado.

De modo geral, doutrina e jurisprudência admitem a figura híbrida do homicídio privilegiado-qualificado quando resultante da combinação de circunstância subjetiva privilegiadora, todas de natureza subjetiva (valor social, valor moral, domínio de violenta emoção) com circunstância qualificadora objetiva[21] (incs. III e IV do § 2º do art. 121 do CP).

A tese de que o privilégio seria aplicável apenas à modalidade básica do delito, porque previsto em parágrafo (§ 1º) precedente ao dispositivo das qualificadoras (§ 2º), defendida dentre outros por Euclides Custódio da Silveira, tem apenas valor histórico[22].

Desse modo, admissível que o agente, querendo eliminar do meio social o perigosíssimo narcotraficante, coloque-se de tocaia para matá-lo com o uso de explosivo, numa conduta que reúna, ao elemento subjetivo do relevante valor social (§ 1º) duas qualificadoras objetivas (§ 2º, incs. III e IV).

Não se admite, porém, a combinação de privilegiadora com qualificadoras também subjetivas.

A respeito, em concurso público para promotor de Justiça no Estado do Ceará, foi posta a seguinte questão, cujo gabarito oficial é o da letra “a”:

“O reconhecimento do homicídio privilegiado é incompatível com a admissão da qualificadora:

  1. a) do motivo fútil.
  2. b) do emprego de explosivo.
  3. c) do meio cruel.
  4. d) do emprego de veneno.
  5. e) da utilização de meio que possa resultar em perigo comum.”[23]

Ressalvando de que se trata de posicionamento oposto à orientação doutrinária e jurisprudencial relativamente às qualificadoras objetivas[24], entendemos que a composição do homicídio emocional com qualquer qualificadora do homicídio é inadmissível.

Discordamos da pertinência lógica da figura híbrida do homicídio privilegiado-qualificado, quando o privilégio resulta da violenta emoção.

A ação sob o domínio de violenta emoção é desordenada, sem planejamento, sem premeditação. A ação de matar é um verdadeiro imprevisto para o agente. Irrompe na realidade da vida diante da injusta provocação. Sua execução se dá de inopino, subitânea e tempestuosamente. O agente atua absorvido pela explosão dos sentimentos e atua no curto período de vigência dessa explosão num processo mental desordenado, em circunstâncias incompatíveis com a premeditação, reflexão ou cálculo que exigem, aos fins qualificadores, os meios insidiosos e cruéis e os modos de execução da traição, emboscada e dissimulação.

O meio cruel, embora incluído no inc. III do § 2º do art. 121 do CP, que reúne qualificadoras objetivas[25], exige o sadismo do agente como elemento subjetivo de tendência, distinto e além do dolo. Para a configuração da crueldade não basta o dado objetivo da repetição de golpes ou tiros[26]. Exatamente pelo sadismo, é previamente escolhido para infligir padecimento martirizante à vítima, desnecessário ao fim de matar. Pressupondo reflexão e cálculo, a qualificadora da maldade é incompatível com a violenta emoção[27]. Aliás, o só nervosismo que conduz o agente à repetição de golpes, afasta a configuração da qualificadora do meio cruel[28].

Quanto à traição, à emboscada e à dissimulação, modos de execução do homicídio e qualificadoras objetivas previstas no inc. IV do § 2º do art. 121 do CP, possuem em comum a perfídia, que também exige premeditação, planejamento, reflexão e cálculo do agente para surpreender a vítima e impedir ou dificultar a defesa, elementos psicológicos que a desordenada ação sob o domínio de violenta emoção, levada a efeito logo após à injusta agressão, não tem como atender. Também a surpresa, incluída no dispositivo por interpretação analógica, como outro recurso, deve inserir-se na sinonímia da perfídia, o que é incompatível com o homicídio emocional[29].

Quanto aos motivos fútil e torpe dos incs. I e II, às conexões do inc. V, e às condições das vítimas dos incs. VI e VII, não podem ser também combinados, pois a motivação do homicídio emocional, a causa moral da conduta, é a injusta provocação da vítima.

Enfim, o homicídio emocional, compreendido como expressão dinâmica de um instinto que leva o sujeito a reagir à injusta provocação da vítima, sem intermezzo e sob o domínio de emoção repentina e intensa, inadmite combinação com qualquer qualificadora, seja objetiva ou subjetiva. Inviável ao agente tempo e discernimento suficientes para premeditar, planejar, dissimular o ataque.

Aliás, a classificação das qualificadoras, em objetivas e subjetivas, é feita unicamente para destacar os motivos determinantes dos meios e modos pelos quais o homicídio pode ser praticado.

Não importa, necessariamente, numa distinção de fundo, como se as qualificadoras objetivas não contivessem mínima parcela subjetiva, como se o dolo do agente não devesse necessariamente abrangê-las, sob pena de responsabilização penal objetiva.

VII – Homicídio privilegiado-qualificado hediondo.

Mesmo na hipótese de reconhecimento da figura híbrida, o homicídio privilegiado-qualificado não é crime hediondo, sob pena de violação da legalidade. A Lei dos Crimes Hediondos refere-se apenas ao homicídio simples e ao homicídio qualificado. Além disso, inconcebível que alguém comete um crime hediondo por relevante valor social ou moral.


BIBLIOGRAFIA

[1] Direito Penal – Crimes contra a pessoa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 44.

[2] De acordo com GUILHERME NUCCI: “A denominação ora exposta é tradicional na doutrina e na jurisprudência, embora, no significado estrito de privilégio, não possamos considerar a hipótese do § 1.º do art. 121 como tal. O verdadeiro crime privilegiado é aquele cujos limites mínimo e máximo de pena, abstratamente previstos, se alteram, para montantes menores, o que não ocorre neste caso. Utiliza-se a pena do homicídio simples, com uma redução de 1/6 a 1/3. Trata-se, pois, como a própria rubrica está demonstrando, de uma causa de diminuição de pena. O verdadeiro homicídio privilegiado é o infanticídio, que tem as penas mínima e máxima alteradas, embora, para ele, tenha preferido o legislador construir um tipo autônomo. Assim, formalmente, o infanticídio é crime autônomo; materialmente, não passa de um homicídio privilegiado” (Código Penal Comentado. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, comentários ao art. 121, nota nº 13).

[3] STF, RHC 92.571-DF. STJ, RE 912904-SP.

[4] Abigeatário é quem pratica abigeato, espécie de crime de furto que envolve a subtração de animais, principalmente domesticados, como animais de carga e animais para abate, no campo e fazendas, prevista no § 6º do art. 155 do CP.

[5] Exemplo oferecido por MASSON, que conclui:  “A” responde por homicídio privilegiado (relevante valor moral), enquanto a “C” deve ser atribuído o crime de homicídio, simples ou qualificado (dependendo do caso concreto), mas nunca o privilegiado, pois o relevante valor moral a ele não se estende. Comentários ao art. 121.

[6] Caso concreto reconhecido pela justiça italiana.

[7] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal, Parte Especial. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018,  vol. 2, item 2.12.1. Na sequência ao exemplo, NUCCI escreve: “Embora haja punição, pois não se trata de ato lícito (como no caso de legítima defesa ou estado de necessidade), o Estado, por intermédio da lei, entende ser cabível uma punição menor, tendo em vista a relevância do motivo que desencadeou a ação delituosa. Protege-se, indiscutivelmente, a vida do traficante, embora os valores que estão em jogo devam ser considerados para a fixação da reprimenda ao autor do homicídio”.

[8] Código de Ética Médica, art. 41, § único: “Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”. Resolução 1.805/2006, Conselho Federal de Medicina: “Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. § 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação. § 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário. § 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.

[9] Código de Ética Médica. “É vedado ao médico: Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal”.

[10]Em ação civil pública do MPF contra a Resolução do CFM que disciplina a ortotanásia, a sentença que a julgou improcedente reconheceu que o não emprego de meios extraordinários para prolongar o estado de morte já instalado, estando o paciente com doença incurável e prognóstico de morte iminente e inevitável, ou em estado clínico irreversível, não é omissão criminosa, não produz a morte do paciente, uma vez que nenhum ato médico poderia evitá-la (ACP 2007.34.00.014809-3).

[11] STF, HC 93.242/SP.

[12] CAPEZ: “Se o erro for de apreciação dos fatos (o sujeito vê uma realidade, mas enxerga outra), aplica-se a regra do erro de tipo, excluindo-se o dolo e, se inevitável, também a culpa. Por exemplo: o sujeito ouve uma ofensa à mãe de um árbitro de futebol e confunde a vítima com a sua genitora. Em contrapartida, quando o agente tiver perfeita noção de tudo o que está ocorrendo, mas imaginar-se autorizado a reagir, por uma equivocada apreciação dos limites da norma, o caso será de erro de proibição. Assim, por exemplo, quando o proprietário acompanha a execução de uma ordem legal de despejo, e o inquilino despejado, julgando-se injustamente provocado, reage com violência. Trata-se de típico caso de erro de proibição” (Curso de Direito Penal. Parte Especial, 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, Item 11.2 ,“i.i.”).

[13]“O organismo considerado como expressão material, em oposição às funções psíquicas. Variações somáticas ou modificações das funções da vida orgânica decorrentes da forte e transitória perturbação da afetividade: pulsar precípite do coração, alterações térmicas, aumento da irrigação cerebral, aceleração do rítmico respiratório, alterações vasomotoras, intensa palidez ou intenso rubor, tremores, fenômenos musculares, alterações das secreções, suor, lágrimas etc.” – HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, vol. V, p.  132.

[14]HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, vol. V, p. 135.

[15] Revista dos Tribunais. São Paulo, vol. 785, p. 588.

[16]  Curso de Direito Penal – Parte Especial, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, item 2.13.

[17] Revista dos Tribunais. São Paulo, vol. 761, p. 581.

[18] Direito Penal: Crimes contra a pessoa. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973,  p. 51-52.

[19] STF, HC 102.459-MG, Primeira Turma, relator Ministro Dias Toffoli, Julgado em 03/08/2010 e DJE de 28/10/2010.

[20] STJ, HC 129726-MG, Quinta Turma, relator Ministro Jorge Mussi, julgado em 26/04/2011 e DJe de 09/05/2011.

[21] STF, HC 97.034/MG; HC 76.196-GO, Segunda Turma, relator Ministro Maurício Correa,  julgado em 29.09.1998; STJ, REsp 1274563-MT, Sexta Turma, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 21.06.2016, DJE de 29.06.2016; HC 171.652-SP, Quinta Turma, relator Ministro Campos Marques, julgado em 18.10.2012; HC 129.726-MG, Quinta Turma, relator Ministro Jorge Mussi, julgado em 26.04.2011.

[22] Crimes contra a pessoa. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 55.

[23] Ano: 2009 Banca: FCC Órgão: MPE-CE Prova: FCC – 2009 – MPE-CE – Promotor de Justiça.

[24] O reconhecimento pelo Tribunal do Júri de que o paciente agiu sob o domínio de violenta emoção com surpresa para a vítima não é contraditório. A Jurisprudência tem-se pacificado no sentido de que é possível a coexistência de fatores subjetivos e objetivos (STJ, HC 3.810-6- ES). Segundo NUCCI, “Tem sido posição predominante na doutrina e na jurisprudência a admissão da forma privilegiada-qualificada, desde que exista compatibilidade lógica entre as circunstâncias. Como regra, pode-se aceitar a existência concomitante de qualificadoras objetivas com as circunstâncias legais do privilégio, que são de ordem subjetiva (motivo de relevante valor e domínio de violenta emoção). O que não se pode acolher é a convivência pacífica das qualificadoras subjetivas com qualquer forma de privilégio, tal como seria o homicídio praticado, ao mesmo tempo, por motivo fútil e por relevante valor moral. Convivem, em grande parte, harmoniosamente as qualificadoras dos incisos III, IV, VI e VII com as causas de diminuição da pena do § 1.º. Não se afinam as qualificadoras dos incisos I, II e V com as mesmas causas” (Código Penal Comentado. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, comentários ao art. 121, nota nº 20.

[25] “Mas o meio cruel pode harmonizar-se com a considerada privilegiadora (violenta emoção), porque ele se configura nos atos objetivos que geralmente se acham distanciados da origem ou da consequência emocional. Como a emoção é repentina, depois dela pode surgir o plano de crueldade, no mesmo sujeito, sem que com isso haja incompatibilidade. É claro que o esquema do meio cruel sempre se gera e realiza a partir do estado de morbidez mental, mas nem por isso a desordem racional afasta o fator de qualificação” (TJRS, Apelação 688018183).

[26] Nesse sentido: Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do RGS, Porto Alegre, vol. 105, p. 169 e vol. 103, p. 45.

[27] Nesse sentido, SEBASTIAN SOLER, apud Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do RGS, Porto Alegre, vol. 6, p. 90.

[28] Nesse sentido: DELMANTO, Celso, Roberto, Roberto Júnior e Fábio de Almeida. Código Penal Comentado. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 203.

[29] “Homicídio privilegiado e qualificado. Reconhecimento concomitante do homicídio privilegiado pela violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, e o homicídio qualificado pela surpresa. Incompatibilidade manifesta. Reindividualização da pena” (Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do RGS, Porto Alegre, vol. 113, p. ).

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